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ESPIRITUALIDADE


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«ACERCA DA ORAÇÃO»

João, o Solitário

(Trad. a partir do inglês por Patrícia Calvário)


 
1. Não imagines, irmão, que a oração consiste apenas em palavras ou que pode ser aprendida por meio de palavras. Não, na verdade, deves compreender que a plenitude da oração espiritual não se atinge como resultado de uma aprendizagem ou através da repetição de palavras. Pois não é a um homem que estás a orar, perante quem podes repetir um discurso bem elaborado: é a Ele, que é Espírito, a quem diriges os movimentos da tua oração. Portanto, deves orar também em espírito, uma vez que Ele é Espírito.
2. Aquele que ora em plenitude a Deus não precisa de um lugar especial. Nosso Senhor diz: “Há de vir a hora em que não adorareis o Pai nesta montanha nem em Jerusalém”; e mais uma vez, para mostrar que não se requer lugar algum em especial para orar, ensinou também que aqueles que adoram o Pai o devem fazer “em espírito e verdade”; e continua instruindo-nos referindo porque devemos orar segundo disse, “Pois Deus é Espírito”, e deve ser venerado espiritualmente, no espírito. Paulo também nos ensina acerca de como devemos empregar esta salmodia e oração espiritual: “O que, portanto, devo fazer?”, pergunta, “Orarei em espírito e orarei na minha mente; cantarei no espírito e cantarei na minha mente”. É no espírito e na mente, portanto, que Paulo recomenda que oremos e cantemos a Deus; sobre a língua nada nos diz. E não o faz porque esta oração espiritual é mais interior do que a língua, mais profundamente interior do que qualquer coisa que assome aos lábios, mais interior do que quaisquer palavras ou canto vocal. Quando alguém ora desta forma está imerso num nível mais profundo do que todo o discurso e permanece no plano onde se podem encontrar seres espirituais e anjos; como estes, essa pessoa profere “santo” sem quaisquer palavras. Mas se esta forma de oração cessa e recomeça a oração do canto vocal, então encontra-se fora da região dos anjos e torna-se novamente um homem comum.
3. Quem canta usando a língua e o corpo e persevera nesta adoração noite e dia, pertence à categoria dos “justos”. Mas aquele que foi considerado digno de penetrar mais fundo, cantando na mente e no espírito, esse é um “ser espiritual”.
A categoria do “ser espiritual” é mais elevada que a do “justo”, mas só é possível tornar-se “ser espiritual” depois de ser “justo”. Até alguém ter venerado por um considerável número de vezes desta forma exterior, jejuando, usando a voz para salmodiar, com longos períodos em genuflexão, vigílias constantes, recitação de salmos, trabalhos árduos, súplicas, abstinência, escassez de comida, e outras coisas deste tipo, mergulhando a sua alma continuamente na recordação de Deus, cheia de temor e tremor ao seu nome, humilde perante todos os homens, considerando toda a gente melhor que ele, mesmo quando vê as ações do homem: quando vê alguém perverso, ou adúltero, ou alguém ganancioso, ou bêbedo, ainda assim age com humildade perante eles e no mais oculto dos seus íntimos pensamentos verdadeiramente considera-os melhores que ele, não aparentemente, mas vendo alguém no meio de todas estas coisas más, aproxima-se e age com humildade perante ele, suplicando-lhe “ora por mim, pois sou um pecador perante Deus, sou culpado de muitas coisas, por nenhuma delas paguei o preço”. Somente quando alguém atinge isto – e outras coisas mais grandiosas que estas que mencionei – poderá cantar a Deus a mesma salmodia que os seres espirituais usam para O adorar.
4. Pois Deus é silêncio e no silêncio é ele cantado através desta salmodia, a única digna Dele. Não falo do silêncio da língua, pois se se mantém meramente a língua em silêncio, sem saber como cantar na mente e em espírito, significa apenas que se está desocupado e se enche de maus pensamentos: mantém apenas um silêncio exterior e não sabe como cantar interiormente, a língua do seu “homem interior” ainda não aprendeu a movimentar-se nem sequer para balbuciar. Deves observar o bebê espiritual que está dentro de ti da mesma forma que o fazes com uma criança comum ou um bebê: tal como a língua na boca de um bebê está imóvel porque não sabe ainda como falar ou os movimentos certos para falar, o mesmo acontece com a língua interior da mente; estará alheia a todo o discurso e pensamento: estará apenas ali no seu sítio, pronta a aprender os primeiros balbucios dos enunciados espirituais.
5. Assim, há o silêncio da língua, há o silêncio de todo o corpo, há o silêncio da alma, há o silêncio da mente e há o silêncio do espírito. O silêncio da língua é a abstenção de todo o discurso maldoso; o silêncio de todo o corpo dá-se quando todos os seus sentidos estão desocupados; existe silêncio da alma quando desprovida de maus pensamentos irrompendo nela; o silêncio da mente é a ausência de reflexão sobre ensinamentos prejudiciais; o silêncio do espírito existe quando a mente se abstém até mesmo de inspirações causadas por criaturas espirituais e todos os seus movimentos são inspirados apenas por Deus, no assombro tremendo do silêncio que envolve o Ser.
6. Estes são os graus e medidas que podem ser encontradas no discurso e no silêncio. Mas se ainda não os alcançaste e te encontras muito longe deles, permanece onde estás e canta a Deus usando a voz e a língua em amor e temor. Canta com esmero, trabalha tenazmente até alcançares o amor. Permanece no temor de Deus, como é de seu direito, e deste modo serás considerado digno de O amar com um amor natural – Ele que se deu a nós na nossa renovação [batismo].
7. E quando recitares as palavras da oração que te escrevi, tem cuidado para não as repetires apenas, mas deixa que o teu ser se transforme nessas palavras. Pois não há qualquer proveito na recitação a não ser que a palavra de fato se incorpore em ti e se torne ação, e assim serás visto pelo mundo como homem de Deus – a quem é devida a glória, a honra e a exaltação, pelos séculos dos séculos. Amém!
 
  

«Caminho, Verdade e Vida»

Fabio Lins*
 Fonte: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/espiritualidade/caminho_verdade_e_vida.html
odos nós já ouvimos, se é que não lemos, a famosa frase de Jesus em São João 14:6 "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim." A segunda sentença foi e tem sido sistematicamente abusada por intolerantes de todos os matizes. É importante notar que embora eu critique esses exageros de fideísmo, existem outras passagens como a famosa de São João, na qual Jesus ora para que todos sejam um que tem sido, mais recentemente, abusada para instaurar uma espécie de relativismo que não poderia ser mais exógeno ao Evangelho.
Mas o objetivo deste texto é, na verdade, deter-se sobre a primeira sentença do trecho citado.
Um Pouco de Lógica
É certo ver aí uma das frases nas quais Jesus Cristo alega ser Deus. No entanto não é este o aspecto que gostaria de trabalhar e sim o de uma revelação implícita aí. Todos nós já vimos na escola a famosa relação "Se a=b e b=c então a=c". Tenho certeza que os avançados em matemática e lógica poderiam tecer alguns comentários sobre essa formulação bem simples, mas ela descreve um bom número de eventos e, no contexto comunicativo, não foi direcionada para especialistas, mas para leigos em lógica - quando muito para diletantes se considerarmos o público de S. João e não o que ouvia ao Cristo quando ele enunciou a frase.
O ponto é que o texto nos diz que se Caminho=Jesus, Verdade=Jesus e Vida=Jesus, então Caminho, Verdade e Vida são todos o mesmo elemento. Pensemos nisso por um instante: a Verdade e a Vida são o mesmo objeto, a mesma coisa. Se afastar da Vida é viver em falsidade, viver em falsidade é se afastar da Vida, morrer um pouco. Não de forma metafórica, mas literal.
Vidas Falsas
Tal conceito é assombroso. Quando eu minto, eu morro um pouco. Quando sou falso para com os outros ou até para comigo mesmo, estou cultivando minha própria morte de uma forma mais intensa do que se fumasse 30 pacotes de cigarro por dia. Aliás, muito pior do que isso.
Quando eu sou falso, eu estou fora da Verdade. Só que a Verdade e a Vida são a mesma coisa. Quando eu sou falso, eu estou fora da Vida. Já estou morto. Não é por outro motivo que Jesus também disse "Deixe que os mortos enterrem seus mortos" em São Lucas 9:60 e São Mateus 8:22.
Ele sabe que a imensa maioria das pessoas levam vidas falsas, cheias de insinceridade para consigo mesmas, para com o próximo e para com Deus. É o sujeito que seria bom advogado, mas seduzido pelo glamour do poeta boêmio, passa a querer viver de sua poesia ruim. Ou o contrário, o excelente poeta que ambicionando o status do advogado torna-se um defensor medíocre. É a mulher que vive negando a miséria de vida que tem com um marido lixo. É a pessoa que acha que tem que ser campeã em tudo e sempre quando no fundo tudo que ela queria é um pouco de paz. É o político que se ilude dizendo para si mesmo que a vida cercada de mentiras e desonestidade é que é "vida" só porque está em meio a riquezas e cercado de pessoas-parasitas que querem partilhar disso. É a pessoa que sacrifica sua liberdade por segurança. É o escravo de suas compulsões e impulsos mórbidos sejam sexuais ou não que mente para si mesmo dizendo que isso é "viver intensamente cada segundo", que ser mais "mulher" ou mais "homem" é tratar o sexo oposto como lixo. Enfim é construir significados para si ao invés de simplesmente entender O Significado da Vida.
«Eu quero ser um Menino de Verdade»
De forma geral, as pessoas subestimam os contos infantis. Pensam que são apenas estórias bonitinhas, cujo valor está exclusivamente nisso mesmo: são bonitinhas. Têm o mesmo valor da decoração de palhaços ou florzinhas do quarto da criança, desprovidos de sentido mais profundo do que marcar aquele "serzinho" como uma criança. Penso que estão errados quanto a isso. De forma geral o "conto infantil" nada mais é que o antigo conto fantástico pasteurizado. A presença do mágico é tida como "coisa de criança", mas na verdade o que ocorre é que esses contos expressam questões profundas através de uma realidade flexível.
Como disse Chesterton contamos estórias de rios em que corre ouro líquido apenas para nos lembrar de como nos maravilhamos quando vimos um rio de água pela primeira vez e como a fluidez da água, então, nos parecia tão estranha e maravilhosa quanto uma suposta fluidez do ouro.
Falamos de dragões porque isso nos lembra a primeira vez que vimos elefantes e leões. Esse estupor maravilhado diante da realidade é sufocado e soterrado com o passar dos anos pelas banalidades do dia-a-dia. Mas foi o próprio Cristo quem disse: "Se não vos tornardes como criancinhas, não entrarão no Reino". Recuperar esse sentimento é fundamental para a salvação. E nada melhor que os contos fantásticos para isso.
Todo o parágrafo anterior foi para explicar porque o conto do Pinóquio representa o que falava sobre "vidas falsas". Pinóquio não é "de verdade". Ele não tem vida, ele vive na mentira, ele não segue o caminho para o qual é constantemente re-convocado pelo Grilo. A maioria de nós segue o caminho oposto do Pinóquio. Nascemos "de verdade" e vamos nos tornando marionetes ao longo da vida, deixando que outras pessoas carismáticas ou não, governos e políticas guiem nossos movimentos. Nos vendemos barato como, em Crônicas de Nárnia diz a Feiticeira para o sátiro sobre o Edmundo: "Ele te vendeu em troca de docinhos". E assim nos tornamos, ainda por cima, marionetes com orelhas de burro. Mas deixarmos de ser "meninos e meninas de verdade"
para nos tornarmos marionetes significa também deixarmos de ser seres vivos para nos tornarmos algo semelhante a um pedaço morto de madeira, apenas esculpido em forma humana. Nos afastamos da Verdade de nossas vidas e assim nos afastamos da Vida em si mesma. Nos tornamos mentirosos. E morremos com isso, nosso corpo animado, nada além de uma carcaça de carne, com um espírito que não se destrói mas também não morre. Zumbis. E se nos tornamos aquele tipo especial de cadáver ambulante que ainda é capaz de destruir a Vida dos que A possuem, aí somos a própria expressão do mito do vampiro. Somos uma marionete especialista em transformar "meninos de verdade" em marionetes também.
O Chifre Falso do Unicórnio Real
No desenho "O Último Unicórnio", baseado no livro de mesmo nome, a último unicórnio do mundo sofre com o fato de que ninguém mais é capaz de vê-la. Todos que olham para ela a vêem sem chifre. Vêem um cavalo normal. São cegos para tudo que ela possui de particular, único, belo, mágico e maravilhoso. As pessoas nessa estória são igualitários, filhos da Revolução Francesa e da época moderna apesar da estória se passar em mundo medieval. Olham para um ser mítico e não conseguem enxergar nada além do que ele possui de cotidiano, banal e de comum, igual aos demais. Um dos momentos mais comoventes do filme é quando uma bruxa velha captura a unicórnio e lhe aplica um chifre falso para expô-la em seu circo de bizarrices. As pessoas vêm, olham para "um cavalo com chifre de papelão" e, acreditando no embuste, pensam ver um unicórnio. É um momento denso. A menina chora de emoção ao ser enganada pelo chifre falso, por causa da incapacidade dela de ver o unicórnio de verdade que está a sua frente. É uma síntese de nossa era: cegos para a verdade, nos emocionamos com os simulacros de verdade pelo amor natural que sentimos pela verdade. Revelado o simulacro, nossa raiva nos torna ainda mais cegos para a verdade que continua a nossa volta e em nós, e mais vulneráveis a novos simulacros. A unicórnio encontra então um aliado no mago Schmendrick que lhe diz: "Eu posso vê-la, porque eu também sou de verdade. Como você." É a explicação para o problema. As pessoas não vêem nada que seja verdadeiro, porque elas mesmas não são de verdade, porque não estão na Verdade, estão afastadas. São os "mortos" de Jesus, os "bonecos de madeira" do conto do Pinóquio, os "robôs" dos contos de ficção-científica, os homens de lata sem coração, os zumbis modernos vagando em busca do "cérebro" que eles mesmos já não possuem. É impressionante como algumas pessoas imaginam uma vida "espiritual" como algo insosso. Jesus mesmo disse "Vocês são o sal da terra. Se o sal não dá sabor não serve para nada". A vida espiritual nada mais é que o processo, precisamente de abandonar a condição de ser sem vida, sem sabor, para se tornar o "tempero do mundo" o que dá sabor à vida.
Temos todos que nos tornar homens e mulheres "de verdade".
Vida Peregrina
É aí que entra, penso, a primeira parte da afirmação e que, por muito tempo, foi a mais misteriosa para mim. O que é "O Caminho"? Ora, o Caminho é nossa história pessoal rumo à plenitude e a Deus. Somos peregrinos por natureza. É nossa vocação (todos temos uma, não apenas sacerdotes e ministros), nosso chamamento, aquilo que Deus nos criou para sermos e fazer. É nosso Verdadeiro eu, nossa sintonia no Universo. Diversos filmes, livros e estórias falam do "Caminho".
Temos o herói ou heroína normalmente dedicados a alguma atividade que ou consideram perfeitamente insossa, ou, se gostam, gostam apenas porque nunca experimentaram nada melhor ou estão acomodados. Surge então algum personagem ou evento que representa, por assim dizer, a "Voz", algo que os tira daquela "normalidade" e os chama para a "aventura" que não precisa ser uma aventura propriamente dita; vide o filme baseado em fatos reais "Óleos de Lorenzo", no qual os pais do menino que dá nome ao filme descobrem que ele possui uma grave doença degenerativa do sistema nervoso. A partir daí inicia-se a luta dos pais para a busca de uma cura. Os médicos, no entanto, logo os desencantam explicando, repetidas vezes que a doença age rapidamente e que certamente não há cura com a tecnologia atual. O pai do rapaz então, que não possuía nenhuma formação científica, passa a estudar biomedicina e bioquímica por si só. Não descobre a cura mas descobre um remédio que paralisa o progresso da doença. Era tarde demais para Lorenzo, mas para centenas de milhares de pessoas ao redor do mundo, o remédio tornou-se a garantia de uma vida normal, pois detectando-se a doença em seus estágios iniciais, o remédio impede que ela progrida levando à morte. Os pais de Lorenzo são os heróis. A tragédia que se lhes abateu é a "Voz". A doença era o "dragão", o "monstro", que arrebatou-lhes o filho, mas foi detido, salvando a vida de milhares, e, contando todos que serão ainda salvos ao longo da história da humanidade, milhões de pessoas. Seu Caminho era a luta para destruir o poder letal do "monstro". E foi cumprido.
Felizmente nem todo Caminho possui tais contornos de tragédia. E, no contexto deste artigo, aprendemos que esse Caminho é ele mesmo a própria Verdade. E é a Vida. Quem se afasta do seu próprio Caminho, está longe da Verdade, da Vida, de Deus, das pessoas e de si mesmo. A novidade Cristã, neste contexto é precisamente que este Caminho-Verdade-Vida que se expressa de forma única em cada um de nós, nasceu de uma mulher, viveu como nós e, se chocando de frente com a Morte, destruiu-a por ser mais forte, libertando-nos do jugo dela.
Agora cabe a nós escolhermos como passaremos o resto da Eternidade que nos foi concedida e na qual, de certa forma, já vivemos. Viveremos buscando O Caminho universal para que possamos vivenciar sua expressão particular em nossas vidas, buscando viver A Vida para usufruir a expressão particular Dela em nós, buscando A Verdade, para que nós mesmos sejamos "pessoas de Verdade" ou seremos bonecos de madeira, mortos, máquinas de carne que se movimentam por aí da mesma forma que robôs? A escolha é toda e só nossa.

*Publicação autorizada pelo autor
fabiolins@yahoo.com

Texto completo da quinta pregação da Quaresma do Pe. Raniero Cantalamessa, ofmcap



São Gregório Magno e o entendimento espiritual das Escrituras


São Gregório Magno e o entendimento espiritual das Escrituras
Em um esforço por colocar-nos na escola dos Padres para dar um novo impulso e profundidade à nossa fé, não pode faltar uma reflexão sobre o modo em que eles liam a Palavra de Deus. Será o Papa São Gregório Magno a guiar-nos à “inteligência espiritual” e a um renovado amor pelas Escrituras.
Aconteceu no mundo moderno, em relação à Escritura, a mesma coisa que aconteceu com a pessoa de Jesus. A busca do exclusivo sentido histórico e literal da Bíblia que dominou nos últimos dois séculos partia dos mesmos pressupostos e levou aos mesmos resultados da pesquisa sobre o Jesus histórico diferente do Cristo da fé. Jesus era reduzido a um homem extraordinário, um grande reformador religioso, mas nada mais; a Escritura era reduzida a um livro excelente, até mesmo o mais interessante do mundo, mas um livro como os outros, que devia ser estudado com os meios com os quais se estudam todas as grandes obras da antiguidade. Hoje se está indo inclusive além. Um certo ateísmo militante maximalista, anti-judaico e anti-cristão, tem a Bíblia, especialmente o Antigo Testamento, como um livro "cheio de abominações", que deve ser retirado das mãos dos homens de hoje.
Nesse assalto às Escrituras, a Igreja opõe a sua doutrina e a sua experiência. Na Dei Verbum, o Vaticano II reafirmou a perene validade das Escrituras, como palavra de Deus à humanidade; a liturgia da Igreja a coloca em um lugar de honra em cada celebração sua; tantos estudiosos, na crítica mais atual, unem também a fé mais convicta no valor transcendente da palavra inspirada. A prova talvez mais convincente é, no entanto , a da experiência . O argumento  que, como vimos, levou à afirmação da divindade de Cristo em Nicéia, em 325 e pelo Espírito Santo em Constantinopla no 381, se aplica plenamente também à Escritura: nela experimentamos a presença do Espírito Santo, Cristo ainda nos fala, o seu efeito em nós é diferente do de qualquer outra palavra; portanto não pode ser simples palavra humana.
1. O velho se torna novo
O propósito da nossa reflexão é ver como os Padres nos podem ajudar a reencontrar aquela virgindade de escuta, aquele frescor e liberdade ao aproximar-se da Bíblia que permitem experimentar a força divina que emana dela. O Padre e Doutor da Igreja que escolhemos como guia, eu disse, é São Gregório Magno, mas para poder compreender a sua importância neste campo temos que voltar para as fontes do rio do qual ele próprio faz parte e traçar, pelo menos no geral, o seu percurso antes de chegar até ele.
Na leitura da Bíblia, os Padres só fazem continuar na mesma linha começada por Jesus e pelos apóstolos, e só esse dado nos deveria fazer mais cautelosos ao julgá-los. Uma rejeição radical da exegese dos Padres significaria uma rejeição da exegese do próprio Jesus e dos apóstolos. Jesus, aos discípulos de Emaús, explica tudo aquilo que se referia a ele nas Escrituras; afirma que as Escrituras falam dele, que Abraão viu o seu dia; muitos gestos e palavras de Jesus se dão “para que sejam cumpridas as Escrituras”; os primeiros dois apóstolos dizem dele: “Achamos aquele de quem Moisés e os profetas escreveram" (Jo 1 , 45).
Mas todos estes eram resultados parciais. Ainda não aconteceu o transfert total. Isso se realiza na cruz e está contido na palavra de Jesus moribundo: “Tudo está consumado”. Também no Antigo Testamento, houve novidades, retomadas, transposições; por exemplo, o retorno da Babilônia era visto como uma renovação do milagre do Êxodo. Eram saltos quantitativos. Agora acontece um salto qualitativo, uma mudança de sinal: personagens, eventos, instituições, leis, templo, sacrifícios, sacerdócio, tudo de repente aparece em uma outra luz. Como quando em uma sala iluminada pela luz fraca de uma vela, se acende de repente uma forte luz de néon. Cristo que é "luz do mundo" é também luz das Escrituras. Quando se lê que Jesus ressuscitado "abre a mente dos discípulos para compreender as Escrituras" (Lc 24, 45), refere-se a esta nova inteligência, trabalhada pelo Espírito Santo.
O Cordeiro quebra os selos e o livro da história sagrada pode finalmente ser aberto e lido (cf. Ap 5). Tudo permanece, mas nada é como antes. É um instante que unifica – e ao mesmo tempo distingue – os dois Testamentos e as duas alianças: “Clara e brilhante, aqui está a grande página que separa os dois Testamentos! Todas as portas são abertas ao mesmo tempo, toda a oposição se dissipa, todas as contradições são resolvidas"[1]. O exemplo mais claro para compreender o que acontece neste momento é a consagração na Missa, e, de fato, esta só é o memorial da outra. Aparentemente nada mudou no pão e no vinho sobre o altar, no entanto, sabemos que, após a consagração, eles já são algo completamente diferente e nós os tratamos de maneira muito diferente de antes.
Os apóstolos continuam esta leitura, aplicando-a à Igreja, assim como à vida de Jesus. Tudo o que estava escrito no Êxodo era escrito para a Igreja (1 Cor 10, 11); a rocha que se seguia e tirava a sede dos judeus no deserto anunciava Cristo e o maná, o pão descido do céu; os profetas falaram dele (1 Pd 1, 10 ss), o que se diz do Servo Sofredor de Isaías foi cumprido em Cristo, e assim por diante.
Passando do Novo Testamento ao tempo da Igreja, notamos dois usos diferentes dessa nova compreensão das Escrituras: um de tipo apologético e outro de tipo teológico e espiritual; o primeiro, usado no diálogo com os de fora, o segundo para a edificação da comunidade. Contra os judeus e os hereges que compartilham a Escritura compõem-se os assim chamados “testemunhos”, ou seja, coleções de frases ou passagens bíblicas a serem usadas para provar a fé em Cristo. Sobre isso se baseia, por exemplo, o Diálogo com Trifon judeu de São Justino, e tantos outros escritos.
O uso teológico e eclesial da leitura espiritual começa com Orígenes, tido justamente como o fundador da exegese cristã. A riqueza e beleza das suas intuições sobre o sentido espiritual das Escrituras e das suas aplicações práticas é inesgotável. Elas farão escola seja no oriente que no ocidente, onde começa a ser conhecido ao mesmo tempo que Ambrósio. Junto com a sua riqueza e genialidade, a exegese de Orígenes introduz, porém, na tradição exegética da Igreja também um elemento negativo devido ao seu entusiasmo pelo espiritualismo de caráter platônico. Tomemos a sua seguinte afirmação de método:
"Não se deve acreditar que os fatos históricos sejam figuras de outros fatos históricos e as coisas corpóreas de outras coisas corpóreas, mas, pelo contrário, que as coisas corpóreas são figuras de coisas espirituais e os fatos históricos de realidades inteligíveis[2]”.
Desta forma, à correspondência horizontal e histórica, própria do Novo Testamento, pela qual um personagem, um fato, ou uma palavra do Antigo Testamento é visto como profecia e figura (typos) do que acontece em Cristo ou na Igreja, se substitui a perspectiva vertical, platônica, pela qual um fato histórico e visível, seja do Antigo como do Novo Testamento, se torna símbolo de uma ideia universal e eterna. A relação entre profecia e realização tende a se transformar na relação entre a história e o espírito[3].
2. As Escrituras, pedras quadrangulares
Por meio de Ambrósio e outros que traduziram as suas obras para o latim, o método e os conteúdos de Orígenes, entram plenamente nas veias da cristandade latina e continuarão a fluir por toda a idade média. Qual foi, então, na explicação da Escritura, a contribuição dos latinos? Podemos resumir a resposta em uma só palavra que é a que melhor expressa o seu gênio próprio: organização!
Àquele de Orígenes se acrescenta, é verdade, a contribuição não menos criativa e audaz de um outro gênio, aquela de Agostinho que enriquecerá de intuições e aplicações novas e ousadas a leitura da Bíblia. Mas não é nesta linha que se coloca a contribuição mais significativa dos Padres latinos, ou seja, na descoberta de significados novos e escondidos na Palavra de Deus, mas na sistematização do imenso material exegético que tinha se acumulado na Igreja, no traçar uma espécie de mapa para orientar-se na sua utilização.
Esse esforço organizativo – começado com Agostinho – foi levado à sua forma definitiva por Gregório Magno e consiste na doutrina do quádruplo sentido da Escritura. Neste campo, ele é considerado "um dos principais iniciadores e um dos maiores patronos da doutrina medieval dos quatro sentidos", a ponto de se poder falar da Idade Média como da “época gregoriana[4]”.
A doutrina dos quatro sentidos da Escritura é uma grade, uma forma de organizar as explicações de um texto bíblico ou de uma realidade da história da salvação, distinguindo nelas quatro campos ou níveis diferentes de aplicação: 1. O nível literal e histórico; 2. O nível alegórico (hoje prefere-se chamar tipológico) relacionado à fé em Cristo; 3. O nível moral, ou seja, em relação ao atuar do cristão; 4. O nível escatológico, que se refere ao cumprimento final no céu. Gregório escreve:
"As palavras da Sagrada Escritura são pedras quadrangulares [...]. Em todo acontecimento do passado que narram [sentido literal], em cada coisa futura que anunciam [sentido anagógico], em cada dever moral que pregam [sentido moral], em cada realidade espiritual que proclamam [sentido alegórico ou cristológico], de cada lado se mantém de pé e são irrepreensíveis[5]”.
Na Idade Média foi composto um famoso dístico que resumiu esta doutrina: Littera gesta docet / Moralis, quid agas; quo tendas anagogia. “A letra te ensina o que aconteceu; o que se deve acreditar a alegoria. / A moral, o que fazer; onde tender, a anagogia”. A aplicação talvez mais clara deste esquema se tem com relação à Páscoa. De acordo com a letra ou a história, a Páscoa é o rito que os judeus cumpriram no Egito; de acordo com a alegoria, referindo-se à fé, ela indica a imolação de Cristo verdadeiro cordeiro pascal; de acordo com a moral, indica a transição dos vícios para a virtude, do pecado à santidade; de acordo com a anagogia ou a escatologia, indica a transição das coisas terrenas às coisas celestiais, ou também a Páscoa eterna que se celebrará no céu.
Não se trata de um esquema rígido e mecânico, mas flexível e passível de infinitas variações, começando com a ordem em que são listados os vários sentidos. Eis um texto de Gregório no qual se vê a liberdade com que ele mesmo usa o esquema do quádruplo sentido e como sabe, com ele, tirar várias harmonias da Escritura. Comentando a imagem de Ezequiel 2, 10, sobre o rolo “escrito dentro e fora” (“intus et foris”, de acordo com a Vulgata) diz:
"O rolo da Palavra de Deus está escrito dentro, por meio da alegoria; fora, por meio da história. Dentro por meio da inteligência espiritual; fora por meio do simples sentido literal, adequado aos espíritos ainda fracos. Dentro porque promete os bens invisíveis; fora, porque estabelece a ordem das coisas visíveis com a retidão dos seus preceitos. Dentro, porque dá a segurança dos bens celestiais; fora, porque ensina como usar os bens terrenos, ou como escapar das suas atrações[6]”.
3. Por que ainda precisamos dos Padres para ler a Bíblia
O que podemos tirar deste modo assim tão livre e corajoso de colocar-se diante da Palavra de Deus? Mesmo um admirador da exegese patrística e medieval como o padre de Lubac admite que não podemos nem retornar a ele, nem imitá-lo mecanicamente no nosso tempo[7]. Seria uma operação artificial, fadada ao fracasso porque não temos os pressupostos dos quais eles partiram, o universo espiritual no qual eles se moviam.
Gregório Magno e os Padres no geral estavam certos sobre o ponto fundamental que  é ler as Escrituras em referência a Cristo e à Igreja. Antes deles já o faziam, o vimos, Jesus e os apóstolos. A parte já superada das suas exegeses está no ter acreditado que podiam aplicar este critério a cada palavra particular da Bíblia, de modo muitas vezes imaginativo, levando ao simbolismo (por exemplo aquele dos números) a excessos que hoje nos fazem rir às vezes.
Podemos ter certeza, observa de Lubac, que, se estivessem vivos hoje, eles seriam os mais entusiastas na utilização dos recursos críticos colocados à disposição pelo progresso dos estudos. Orígenes realizou um trabalho hercúleo no seu tempo deste ponto de vista, obtendo e comparando um com o outro e com o texto hebraico as várias traduções gregas existentes da Bíblia (a Exapla) e Agostinho não hesitava em corrigir algumas de suas explicações à luz da nova versão da Bíblia que Jerônimo estava fazendo[8].
O que então permanece válido da herança dos Padres neste campo? Talvez aqui, mais do que em qualquer outro lugar, eles têm uma palavra decisiva a dizer para a Igreja de hoje que temos de tentar descobrir. O que caracteriza a leitura da Bíblia dos Padres, além das suas elaboradas alegorias e ousadas aplicações, além da mesma doutrina dos quatro sentidos da Escritura? De cima para baixo e cada ponto seu é uma leitura de fé: partia da fé e levava à fé. Todas as suas distinções entre leitura histórica, alegórica, moral e escatológica se resumem hoje a uma só distinção: aquela entre uma leitura de fé da Escritura e uma leitura privada de fé, ou ao menos privada de uma certa qualidade de fé.
Vamos deixar de lado os estudiosos da Bíblia não crentes que lembrei no início, para os quais ela é só um livro interessante, mas só humano. A diferença que eu gostaria de evidenciar é mais sutil e passa entre os mesmos crentes. É a distinção entre uma leitura pessoal e uma leitura impessoal da palavra de Deus. E tento explicar o que entendo. Os Padres se aproximavam da palavra de Deus com uma pergunta constante: o que ela diz, agora e aqui, à Igreja e a mim pessoalmente? Estavam convencidos de que ela sempre traz novas luzes e novos compromissos.
"Toda a Escritura, está escrito, é inspirada por Deus " (2 Tm 3, 16). A expressão que se traduz como “inspirado por Deus”, ou “divinamente inspirada”, na língua original, é uma palavra única, theopneustos, que contém os dois vocábulos de Deus (Theos) e de Espírito (Pneuma). Tais palavras tem dois significados fundamentais. O significado mais conhecido é aquele passivo, revelado em todas as traduções modernas: a Escritura é “inspirada por Deus”. Um outro passo do Novo Testamento explica assim este significado: “Movidos pelo Espírito Santo falam aqueles homens (os profetas) de parte de Deus” (2 Pd 1, 21). É, em definitiva, a doutrina clássica da inspiração divina da Escritura, aquela que proclamamos como artigo de fé no Credo, quando dizemos que o Espírito Santo é aquele “que falou pelos profetas”.
Da inspiração bíblica se ilumina, normalmente, quase apenas um efeito: a infalibilidade bíblica, ou seja, o fato de que a Bíblia não contém nenhum erro (se entendemos “erro”, corretamente, como ausência de uma verdade possível humanamente, em um determinado contexto cultural e, portanto, exigível pelo escritor). Mas a inspiração bíblica fundamenta muito mais do que a simples infalibilidade da Palavra de Deus (que é uma coisa negativa); fundamenta, positivamente, a sua inexauribilidade, a sua força e vitalidade divina. A Escritura, dizia Santo Ambrósio, é theopneustos não só porque é “inspirada por Deus”, mas também porque é “inspirante Deus”, porque inspira a Deus[9]! Agora inspira a Deus!
"Com o que podemos comparar as palavras da Sagrada Escritura - escreve São Gregório – se não com uma pederneira, na qual se esconde o fogo? Ela é fria quando se segura com a mão, mas atingida pelo ferro, solta faíscas e gera fogo[10]”.
A Escritura não contêm só o pensamento de Deus fixado uma vez por todas; contém também o coração de Deus e a sua vontade viva que lhe indica o que quer de você em um certo momento, e talvez só de você. A constituição conciliar Dei Verbum recolhe também esta linha da tradição quando diz que “as sagradas Escrituras inspiradas por Deus [inspiração passiva!] e redigidas uma vez por todas, comunicam imutavelmente a palavra do mesmo Deus e fazem ressoar nas palavras dos profetas e dos Apóstolos a voz do Espírito Santo [inspiração ativa!][11]". Portanto, não se trata só de ler a palavra de Deus, mas também de fazer-se ler por esta; não somente de perscrutar as Escrituras, mas de deixar-se perscrutar pelas Escrituras. Trata-se de não aproximar-se dela como os bombeiros entravam uma vez entre as chamas, ou seja, com ternos de amianto que os faziam passar incólumes entre o fogo.
Retomando a imagem de São Tiago, muitos Padres, entre os quais o nosso Gregório Magno, comparavam a Escritura a um espelho[12]. O que dizer de alguém que passasse todo o tempo examinando a forma e o material de que é feito o espelho, a época em que remonta e tantos outros detalhes, mas não se olhasse nunca no espelho? Assim faria aquele que passasse o tempo resolvendo todos os problemas críticos que a Escritura coloca, as fontes, os gêneros literários etc, mas não se olhasse nunca no espelho, ou melhor, nunca permite que o espelho o olhe e o perscrute a fundo, até o ponto onde se dividem as juntas das medulas. A coisa mais importante, sobre a Escritura, não é resolver os seus pontos obscuros, mas colocar em prática os claros! Ela, diz ainda o nosso Gregório, “se compreende fazendo-a[13]”.
Uma forte fé na palavra de Deus não é apenas essencial para a vida espiritual do cristão, mas também para todas as formas de evangelização. Há duas maneiras de preparar um sermão ou qualquer proclamação da fé, oral ou escrita. Eu posso, antes de sentar-me à mesa e escolher eu mesmo a palavra a ser anunciada e o tema a ser desenvolvido, baseando-me nos meus próprios conhecimentos, nas minhas preferencias, etc., e depois, uma vez preparado o discurso, colocar-me de joelhos para pedir apressadamente a Deus que abençoe o que escrevi e dê eficácia às minhas palavras. É já uma coisa boa, mas não é o caminho profético. Devemos seguir a ordem inversa: primeiro de joelhos, depois à mesa.
Temos que começar da certeza da fé que, em todas as circunstâncias, o Senhor Ressuscitado tem no coração uma palavra sua que deseja fazer chegar ao seu povo. E ele não a deixa de revelar ao seu ministro, se humildemente e com insistência ele a pede. No começo se trata de um movimento quase imperceptível do coração: uma pequena luz que se acende na mente, uma palavra da Bíblia que começa a atrair a atenção e que ilumina uma situação. Verdadeiramente, "a menor de todas as sementes", mas depois você percebe que dentro estava tudo; havia um trovão capaz de derrubar os cedros do Líbano. Depois você se coloca à mesa, abre os seus livros, consulta as suas anotações, consulta os Padres da Igreja, os mestres, os poetas... Mas já é outra coisa. Não é mais a Palavra de Deus à serviço da sua cultura, mas a sua cultura à serviço da Palavra de Deus.
Orígenes descreve bem o processo que leva a esta descoberta. Antes de encontrar na Escritura o alimento – dizia – era preciso suportar uma certa “pobreza" dos sentidos; a alma é cercada pela escuridão em todos os lados, só se encontra em ruas sem saída. Até que, de repente, depois de trabalhosa pesquisa e oração, eis que ressoa a voz do Verbo e imediatamente algo se ilumina; aquele que ela procurava lhe vai ao encontro "pulando sobre as montanhas e saltando pelas colinas" (cf. Ct 2 , 8), ou seja, abrindo-lhe a mente para receber uma palavra sua forte e luminosa[14].  Grande é a alegria que acompanha este momento. Ela fazia dizer a Jeremias: “Quando as tuas palavras vieram a mim, as devorei com avidez; a tua palavra foi a alegria e o gozo do meu coração” (Jer 15, 16).
Normalmente, a resposta de Deus vem na forma de uma palavra da Escritura que, no entanto, naquele momento revela a sua importância extraordinária para a situação e para o problema a ser tratado, como se tivesse sido escrita especificamente para ele. Ao fazer isso, ele fala, de fato, "como com palavras de Deus” (cf. 1 Pd 4, 11). Este método vale sempre: para os grandes documentos, como para a lição que o mestre deu aos seus noviços, para a douta conferência como para a humilde homilia dominical.
Todos nós tivemos a experiência do que pode fazer uma única palavra de Deus profundamente acreditada e vivida primeiramente por aquele que a pronuncia e às vezes até mesmo sem o seu conhecimento; muitas vezes deve-se constatar que, entre tantas outras palavras, aquela foi a que tocou o coração e levou mais de um ouvinte ao confessionário. A experiência humana, as imagens, as histórias vividas, nada de tudo isso está excluído da pregação evangélica, mas deve ser submetida à palavra de Deus que deve estar por acima de tudo. Foi o que nos recordou o Santo Padre nas páginas dedicadas à homilia da “Evangelii gaudium” e é quase presunçoso de minha parte pensar que eu poderia acrescentar algo.
Gostaria de terminar esta meditação com um pensamento de gratidão para com os irmãos judeus, até mesmo como uma felicitação pela próxima visita do Santo Padre a Israel. Se nos divide deles a interpretação que lhe damos, nos une o comum amor pelas Escrituras. No museu de Tel Aviv tem uma pintura de Reuben Rubin onde se veem dois rabinos que apertam, um no peito e outro na bochecha, os rolos da palavra de Deus, e os beijam como se beija a própria esposa. Com os irmãos hebreus é possível algo de análogo àquilo que é o ecumenismo espiritual entre cristãos, ou seja, um colocar juntos, em um clima de diálogo e de estima recíproca, aquilo que nos une, sem ignorar ou esconder o que nos separa. Não podemos nos esquecer que recebemos deles as duas coisas mais preciosas que temos na vida: Jesus e as Escrituras.
Também neste ano, a Páscoa hebraica cai na mesma semana que a cristã. Desejamos a nós mesmos e a eles, Feliz Páscoa, Santo e Feliz Pesach.
[Tradução Thácio Siqueira/ZENIT]
[1] Paul Claudel, L’épée et le miroir: Les sept douleurs de la Sainte Vierge , Paris: Gallimard, 1939), 74-75.
[2] Orígenes, Comentário a João, 10, 110 (GCS, Origenes vol. 4, p. 189)
[3] Cf. H. de Lubac, Histoire et Esprit. L’intelligence de l’Ecriture d’après Origène, Aubier, Paris 1950.
[4] H. de Lubac, Exegèse Mèdiévale. Les quatre sens de l’Ecriture, Aubier, Paris 1959, vol. I,1, p. 189 ; vol. I,2, p. 537).
[5] Gregorio Magno, Homilias sobre Ezequiel, II, IX, 8.
[6] Gregorio Magno,Homilias sobre Ez. I, IX, 30.
[7] H. de Lubac, História e Espírito, cit. , pp. 629 ss.
[8] O faz por exemplo a propósito do significado da palavra “páscoa”, em Enarrationes in Psalmos 120,6 (CC 40, p. 1791).
[9] Ambrosio, De Spiritu Sancto, III, 112.
[10] Gregorio Magno,  Homilias sobre Ezequiel, II,10,1.
[11] Dei Verbum, n. 21.
[12] Gregorio Magno, Moralia, I, 2, 1 (PL 75,  553D).
[13] Ib. I, 10,31.
[14] Cf Origene, In Mt Ser., 38 (GCS, 1933, p. 7); In Cant.,3 (GCS, 1925, p. 202).


«A Oração do Coração»

Henri Nouwen


oração hesicástica, que leva ao descanso em que a alma habita com Deus, é a oração do coração. Para nós que damos tanta importância à mente, aprender a rezar com o coração e a partir dele tem importância especial. Os monges do deserto nos mostram o caminho. Embora não exponham nenhuma teoria sobre a oração, suas narrativas e seus conselhos concretos apresentam as pedras com as quais os autores espirituais ortodoxos mais tardios construíram uma espiritualidade magnífica. Os autores espirituais do monte Sinai, do monte Atos e os startsi da Rússia oitocentista apóiam-se todos na tradição do deserto. Encontramos a melhor formulação da oração do coração nas palavras do místico russo Teófano, o Recluso: "Rezar é descer com a mente ao coração e ali ficar diante da face do Senhor, onipresente, onividente dentro de nós". No decorrer dos séculos, essa perspectiva da oração tem sido central no hesicasmo Rezar é ficar na presença de Deus com a mente no coração, isto é, naquele ponto de nossa existência em que não há divisões nem distinções e onde somos totalmente um. Ali habita o Espírito de Deus e ali acontece o grande encontro. Ali, coração fala a coração, porque ali ficamos diante da face do Senhor, onividente, dentro de nós. É bom saber que aqui a palavra "coração" é usada em seu sentido bíblico pleno. em nosso meio, ela se tornou lugar-comum. Refere-se à sede da vida sentimental. Expressões como "coração partido" e "sentido no coração" mostram ser comum pensarmos no coração como o lugar quente onde se localizam as emoções, em contraste com o frio intelecto onde têm lugar nossos pensamentos. Mas, na tradição judeu-cristã, a palavra "coração" refere-se à fonte de todas as energias físicas, emocionais, intelectuais, volitivas e morais.
No coração, originam-se impulsos impenetráveis, além de sentimentos, disposições e desejos conscientes. O coração também tem suas razões e é o centro da percepção e do entendimento. Finalmente, ele é a sede da vontade: faz planos e chega a uma boa decisão. Assim, é o órgão central e unificador de nossa vida pessoal. Nosso coração determina nossa personalidade e é, portanto, não só o lugar onde Deus habita mas também o lugar ao qual Satanás dirige seus ataques mais ferozes. Esse coração é o lugar da oração. A oração do coração dirige-se a Deus a partir do centro da pessoa e, assim, afeta toda a nossa compaixão.
Um dos monges do deserto, Macário, o Grande, diz: "A tarefa principal do atleta (isto é, do monge) é entrar em seu coração". Isso não significa que o monge deva procura encher sua oração de sentimento; signfica que deve esforçar-se para deixar que ela remodele toda a sua pessoa. O discernimento mais profundo dos monges do deserto é que entrar no coração é entrar no Reino de Deus. Em outras palavras, o caminho para Deus é pelo coração. Isaac, o Sírio, escreve:
«Procure entrar na câmara do tesouro... que está dentro de você e então descobrirá a câmara do tesouro do céu. Pois ambas são a mesma coisa. Se conseguir entrar em uma, você verá ambas. A escada para este Reino está escondida dentro de você, em sua alma. Se você purificar a alma, ali verá os degraus da escada que deve subir.»
E João de Cárpato diz:
«É preciso grande esforço e luta na oração para alcançar aquele estado da mente que é livre de toda perturbação; é um céu dentro do coração (literalmente 'intracardíaco'), o lugar onde, como o apóstolo Paulo assegura, "Cristo está em vós.» (2Cor13,5).
Em suas falas, os monges do deserto nos indicam uma visão bastante holística de oração. Eles nos afastam de nossas práticas intelectuais, nas quais Deus se transforma em um dos muitos problemas com os quais temos de lidar. Mostram-nos que a verdadeira oração penetra no âmago de nossa alma e não deixa nada sem tocar. A oração do coração não nos permite limitar nosso relacionamento com Deus a palavras interessantes ou emoções piedosas. Por sua própria natureza, essa oração transforma todo o nosso ser em Cristo, precisamente porque abre os olhos de nossa alma à verdade de nós mesmos e também à verdade de Deus. Em nosso coração passamos a nos ver como pecadores abraçados pela misericórdia de Deus. É essa visão que nos faz clamar: "Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, tem misericórdia de mim, pecador". A oração do coração nos exorta a não esconder absolutamente nada de Deus e a nos entregar incondicionalmente a sua misericórdia.
Assim, a oração do coração é a oração da verdade. Desmascara as muitas ilusões sobre nós mesmos e sobre Deus e nos conduz ao verdadeiro relacionamento do pecador com o Deus misericordioso. Essa verdade é o que nos dá o "descanso" do hesicasta. Quando ela se abriga em nosso coração, somos menos distraídos por pensamentos mundanos e nos voltamos mais sinceramente para o Senhor de nossos corações e do universo. Assim, as palavras de Jesus: "Felizes os corações puros: eles verão a Deus" (Mt 5,8) tornam-se reais em nossa oração. As tentações e as lutas continuam até o fim de nossas vidas, mas com um coração puro ficamos tranqüilos, mesmo em meio a uma existência agitada.
Isso levanta o problema de como praticar a oração do coração em um ministério bastante agitado. É a essa questão de disciplina para a qual precisamos agora voltar a atenção.
Oração e Ministério
Como nós, que não somos monges nem vivemos no deserto, praticamos a oração do coração? Como ela influencia nosso ministério cotidiano?
A resposta a essa pergunta está na formulação de uma disciplina definitiva, uma regra de oração. As características da oração do coração que nos ajudam a formular essa disciplina:
  1. A oração do coração alimenta-se de orações breves e simples.
  2. A oração do coração é incessante.
  3. A oração do coração inclui tudo.
  4. Alimenta-se de Orações Breves
No contexto de nossa cultura verbosa, é significativo ouvir os monges do deserto nos aconselhando a não usar palavras em excesso:
«"Perguntaram ao aba Macário: 'Como se deve rezar?' O ancião respondeu: 'Não há, em absoluto, necessidade de fazer longos discursos; basta estender a mão e dizer: Senhor, como queres e como sabes, tem misericórdia. E se o conflito ficar mais ameaçador, dizer: Senhor, ajuda. Ele sabe muito bem do que precisamos e nos mostra sua misericórdia.»
João Clímaco é ainda mais explícito:
«Quando rezar, não procure se expressar em palavras extravagantes pois, quase sempre, são as frases simples e repetitivas de uma criancinha que nosso Pai do céu acha mais irresistíveis. Não se esforce em muito falar, para que a busca de palavras não lhe distraia a mente da oração. Uma única frase nos lábios do coletor de impostos foi suficiente para lhe alcançar a misericórdia divina; um pedido humilde feito com fé foi suficiente para salvar o bom ladrão. A tagarelice na oração sujeita a mente à fantasia e à dissipação; por sua natureza, as palavras simples tendem a concentrar a atenção. Quando encontrar satisfação ou contrição em determinada palavra de sua oração, pare nesse ponto.»
Essa é uma sugestão muito útil para nós que tanto dependemos da capacidade verbal. A tranqüila repetição de uma única palavra ajuda-nos a descer com a mente ao coração. (Também a base da OC, nota da autora do site). Essa repetição nada tem a ver com mágica. Não tem o propósito de enfeitiçar Deus, nem de forçá-lo a nos ouvir. Pelo contrário, uma palavra ou sentença repetida com freqüência ajuda-nos a nos concentrar, a nos mover para o centro, a criar uma tranqüilidade interior e, assim, a ouvir a voz de Deus. Quando simplesmente tentamos ficar sentados em silêncio e esperar que Deus nos fale, nos vemos bombardeados por intermináveis pensamentos e idéias conflitantes. Mas quando usamos uma sentença bastante simples como: "Ó Deus, vem em meus auxílio", ou "Jesus, mestre, tem piedade de mim", ou uma palavra como "Senhor" ou "Jesus", é mais fácil deixar as muitas distrações passarem sem nos deixarmos iludir por elas. Essa oração simples, repetida com facilidade, esvazia aos poucos nossa vida interior apinhada e cria o espaço sossegado onde habitamos com Deus. É como uma escada pela qual descemos ao coração e subimos a Deus. Nossa escolha de palavras depende de nossas necessidades e das circunstâncias do momento, mas é melhor usar palavras da Escritura.
Quando somos fiéis a essa oração simples e a praticamos com regularidade, ela nos conduz devagar a uma experiência de descanso e nos abre à presença ativa de Deus. Além disso, em um dia muito atarefado, podemos levar essa oração conosco. Quando, por exemplo, passamos, no início da manhã, 20 minutos sentados na presença de Deus com as palavras: "O Senhor é meu pastor", elas lentamente constroem em nosso coração um pequeno ninho para si mesmas e ali ficam o restante de nosso dia atarefado. Até enquanto falamos, estudamos, cuidamos do jardim ou construímos alguma coisa, a oração continua em nosso coração e nos mantém conscientes da orientação onipresente de Deus. A disciplina não é agora dirigida para um discernimento mais profundo do que significa chamar Deus de nosso Pastor, mas para a íntima experiência da ação pastoral de Deus em tudo que pensamos, dizemos ou fazemos.
Incessante
A segunda característica da oração do coração é ser incessante. A pergunta de como seguir a ordem de Paulo: "Orai incessantemente" foi fundamental no hesicasmo desde a época dos monges do deserto até a Rússia oitocentista. Há muitos exemplos desse interesse nos dois extremos da tradição hesicástica. (Vejamos um dos principais:)
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Na famosa história do Peregrino Russo lemos:
«Pela graça de Deus sou cristão, mas pelas minhas ações sou um grande pecador... No vigésimo quarto domingo depois de Pentecostes, fui à igreja para ali fazer minhas orações durante a liturgia. Estava sendo lida a primeira Epístola de S. Paulo aos Tessalonicenses e, entre outras palavras, ouvi estas: 'Orai incessantemente' (1Ts 5,17). Foi esse texto, mais que qualquer outro, que se inculcou em minha mente, e comecei a pensar como seria possível rezar incessantemente, já que um homem tem de se preocupar também com outras coisas a fim de ganhar a vida.»
O camponês foi de igreja em igreja, para ouvir sermões, mas não encontrou a resposta que queria. Finalmente, encontrou um santo staretz que lhe disse:
«A oração interior incessante é um anseio contínuo do espírito humano por Deus. Para sermos bem-sucedidos nesse exercício consolador, precisamos suplicar com mais freqüência a Deus que nos ensine a rezar sem cessar. Rezar mais e rezar com mais fervor. É a própria oração que lhe revela como rezá-la sem cessar; mas leva algum tempo.»
Então, o santo staretz ensinou ao camponês a Oração de Jesus: "Senhor Jesus Cristo, tem misericórdia de mim". Enquanto viajava como peregrino pela Rússia, o camponês passou a repetir essa oração com os lábios. Até considerava a oração de Jesus sua companheira verdadeira. E, então, um dia, teve a sensação de que a oração passou sozinha de seus lábios para seu coração. Ele diz:
«... parecia que, pulsando normalmente, meu coração começava a dizer as palavras da oração a cada batida... Desisti de dizer a oração com os lábios. Passei simplesmente a ouvir o que meu coração dizia.»
Aqui aprendemos outro jeito de chegar à oração incessante. A oração continua a rezar dentro de mim, até enquanto falo com os outros ou me concentro no trabalho manual. Ela se torna a presença ativa do Espírito de Deus que me guia pela vida.
Desse modo vemos como, pela caridade e pela atividade da oração de Jesus em nosso coração, nosso dia todo se transforma em oração contínua. Não sugiro que imitemos o peregrino russo, mas que, também nós, em nosso ministério atarefado, nos preocupemos em rezar sem cessar, para que, seja o que for que comamos ou bebamos, seja o que for que façamos o façamos pela glória de Deus. (Veja 1Cor 10,31). Amar e trabalhar pela glória de Deus não pode permanecer uma idéia sobre a qual pensamos de vez em quando. Deve se tornar uma incessante doxologia interior.
Inclui Tudo
Uma última característica da oração do coração é que ela inclui todos os nossos interesses. Quando entramos com a mente no coração e ali ficamos na presença de Deus, então todas as nossa preocupações mentais se transformam em oração. O poder da oração do coração é precisamente que, por meio dela, tudo que está em nossa mente se transforma em oração.
Quando dizemos a alguém: "Vou rezar por você", assumimos um compromisso muito importante. É uma pena que esse comentário muitas vezes não passe de uma expressão de interesse. Mas, quando aprendemos a descer com nossa mente em nosso coração, todos os que fazem parte de nossa vida são guiados à presença curativa de Deus e tocados por ele no centro de nosso ser. Falamos aqui de um mistério para o qual palavras são inadequadas. É o mistério em que o coração, centro de nosso ser, é transformado por Deus em seu coração, um coração grande o bastante para abraçar todo o universo. pela oração, carregamos em nosso coração toda a dor e tristeza humanas, todos os conflitos agonias, toda a tortura e a guerra, toda a fome, solidão e miséria, não por causa de alguma grande capacidade psicológica ou emocional, mas porque o coração de Deus uniu-se ao nosso.
Aqui vislumbramos o sentidos das palavras de Jesus:
«Tomais sobre vós o meu jugo e sede discípulos meus, porque eu sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vossas almas. Sim, o meu jugo é fácil de carregar, e o meu fardo é leve.» (Mt 11,29-30).
Jesus nos convida a aceitar seu fardo, que é o do mundo todo, um fardo que inclui o sofrimento humano em todos os tempos e lugares. Mas esse fardo divino é leve e podemos carregá-lo quando nosso coração se transforma no coração manso e humilde de nosso Senhor.
Vemos aqui o íntimo relacionamento entre oração e ministério. A disciplina de conduzir todo o nosso povo com suas lutas ao coração manso e humilde de Deus é a disciplina de oração e também do ministério. Enquanto o ministério significar apenas que nos preocupamos muito com as pessoas e seus problemas; enquanto significar um número interminável de atividades que dificilmente conseguimos coordenar, ainda dependeremos muito de nosso coração tacanho e ansioso. Mas quando nossas preocupações são elevadas ao coração de Deus e ali se transformam em oração, ministério e oração se tornam duas manifestações do mesmo amor universal de Deus.
Vimos como a oração do coração se nutre de orações breves, é incessante e inclui tudo. Essas três características mostram como a oração do coração é o alento da vida espiritual e de todo o ministério. Na verdade, essa oração não é apenas uma atividade importante, mas o próprio centro da nova vida que queremos representar e na qual queremos iniciar nosso povo. As características da oração do coração deixam claro que ela exige uma disciplina pessoal. Para levar uma vida de oração não podemos passar sem orações específicas. Precisamos dizê-las de uma forma que nos ajude a ouvir melhor o Espírito que reza em nós. Precisamos continuar a incluir em nossa oração todas as pessoas com as quais e para as quais vivemos e trabalhamos. Essa disciplina vai nos ajudar a passar de um ministério entontecedor, fragmentário e muitas vezes frustrante para um ministério integrador, holístico e muito gratificante. Ela não vai facilitar o ministério, mas simplificá-lo; não vai torná-lo doce e piedoso, mas sim espiritual; não vai fazê-lo indolor e sem lutas, mas tranqüilo no verdadeiro sentido hesicástico."
Fonte:
Capítulo extraído do livro: "A Espiritualidade do Deserto e o Ministério Contemporâneo - O Caminho do Coração" - por Henri J. M.Nouwen - (indicado para os padres, mas também a todos que têm um ministério na Igreja, enfim a todos os cristãos.) Ed. Loyola - ano 2000.

"É possível ter Jesus como amigo porque, tendo ressuscitado, ele está vivo, está ao meu lado




Na quarta pregação da Quaresma Pe. Cantalamessa fala do dogma cristológico e do desejo de Jesus de ser nosso amigo

Existem várias vias de acesso ao mistério de Cristo. Padre Raniero Cantalamessa, na sua quarta pregação de Quaresma, continua o caminho traçado da Tradição da Igreja: o “dogma cristológico”, compreendido como “as verdades fundamentais sobre Cristo, definidos nos primeiros concílios ecumênicos, especialmente no de Calcedônia”. Em definitiva tais verdades, continua o Capuchinho, “se reduzem aos seguintes três pilares: Jesus Cristo é verdadeiro homem, é verdadeiro Deus, é uma só pessoa”.
O pregador da Casa Pontifícia escolhe São Leão Magno para entrar nas profundezas do mistério cristológico. De fato, ele foi o papa reinante no momento em que a teologia latina e aquela grega se encontraram. São Leão Magno não se limitou a transmitir a fórmula de Tertulliano, que tinha escrito: “Vemos duas naturezas, não confusas, mas unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e homem”. Foi mais longe, adaptando a fórmula “aos problemas que surgiram nesse meio tempo, entre o concílio de Éfeso do 431 àquele de Calcedônia do 451”.
Padre Cantalamessa observa que o pensamento cristológico do Papa Leão, exposto no Tomus ad Flavianum, encontra-se no cerne da definição de Calcedônia. Cita, portanto, o ponto em que se declara: "Ensinamos por unanimidade que deve-se reconhecer o único e mesmo Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na divindade e sempre o mesmo perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem [...], gerado antes dos séculos pelo Pai segundo a divindade e nos últimos tempos, por nós homens e para a nossa salvação, gerado por Maria Virgem segundo a humanidade; subsistente nas duas naturezas de modo inconfuso, imutável, indivisível, inseparável, não sendo de forma alguma suprimida a diferença das naturezas por causa da união, pelo contrário, permanecendo preservada a propriedade tanto de uma quanto da outra natureza, elas combinam para formar uma só pessoa e hipóstase”
Na fórmula de Calcedônia, diz o capuchinho, "repousa toda a doutrina cristã da salvação”. De fato, "só se Cristo é homem como nós, o que ele faz, nos representa e nos pertence, e somente se ele mesmo é Deus, aquilo que faz tem um valor infinito e universal”, tanto que, como se canta no Adoro te devote, “somente uma gota do sangue que derramou salva o mundo todo do pecado”. É este um tema sobre o qual o oriente e o ocidente são unânimes.
Santo Anselmo, entre os latinos, e Cabasilas, entre os ortodoxos, apresentam poucas diferenças entre eles quando escrevem que, antes de Cristo, o homem tinha contraído uma dívida infinita com o pecado. Tinha que lutar contra satanás para livrar-se, mas não podia porque era escravo exatamente daquele que deveria vencer. Por outro lado Deus podia expiar o pecado e vencer, mas não tinha que fazê-lo porque não era ele o devedor. Portanto, continua padre Cantalamessa, “era preciso que se encontrassem unidos na mesma pessoa aquele que tinha que lutar e aquele que podia vencer”, e é isso que aconteceu com Jesus, “verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa”.
Estas certezas a respeito de Cristo, no entanto, ao longo dos últimos dois séculos foram colocadas em discussões por estudiosos que, a partir de Strauss, procuraram classifica-las como “puras invenções dos teólogos”, com a finalidade de levar adiante uma tese que separava o Cristo do dogma do Jesus de Nazaré da história. Eles diziam que “para conhecer o verdadeiro Jesus da história” era preciso “prescindir da fé nele posterior à Páscoa”.
O pregador da Casa Pontifícia fala das "reconstruções imaginativas" sobre a figura de Jesus proliferadas em um contexto semelhante e adverte: “Não é possível mais em boa fé escrever “pesquisas sobre Jesus” que pretendem ser ‘históricas’, mas prescindem, ou melhor, excluem do do ponto de partida, a fé nele”. De tal forma, continua o capuchinho, há uma mudança em ato que leva o nome de James D.G. Dunn, um dos maiores estudiosos vivos do Novo Testamento. No livro intitulado “Mudar perspectiva sobre Jesus”, Dunn erradica os pressupostos daquela tese que contrapõe o Cristo da fé e o Jesus histórico, citando, entre as várias argumentações, o fato de que “a fé começou antes da Páscoa”, quando os discípulos começaram a seguir a Jesus porque acreditavam nele. Embora imperfeita, se tratava ainda sempre de fé.
Cristo é a base de tudo no Cristianismo, então Pe. Cantalamessa se pergunta: "Se não se tem ideias claras sobre quem é Jesus, que força terá a nossa evangelização?”. Nem a história nem muito menos o dogma conseguem dar-nos o Cristo da realidade, porque a história, transmitida pelos evangelhos, leva a um Jesus “lembrado”, ou até mesmo mediado pela memória dos discípulos, enquanto que o dogma pode levar a uma Jesus “definido”, “formulado”, que difere da fórmula de Calcedônia como a água que bebemos difere da fórmula química H2O.
Como chegar, então, ao “Jesus real” que está “além da história e por trás da definição”? Por meio do Espírito Santo que, lembra o pregador pontifício, permite um conhecimento “imediato” de Cristo e é “a única mediação não mediata’ entre nós e Jesus, no sentido de que não age como um véu, não constitui um diafragma ou um trâmite, sendo ele o Espírito de Jesus, o seu “alter ego”, da sua mesma natureza”. E, continua, “é a Escritura mesma que nos fala deste papel do Espírito Santo com o propósito de conhecer o verdadeiro Jesus. A vinda do Espírito Santo em Pentecostes resulta em uma iluminação repentina de todo o trabalho e pessoa de Cristo".
Padre Cantalamessa apela, portanto, à ajuda do Espírito Santo para “despertar” o dogma. Do triângulo de São Leão Magno e Calcedônia, pelo qual Jesus Cristo é “uma pessoa em duas naturezas”, o capuchinho toma em consideração o terceiro elemento. O uso moderno do conceito de “pessoa” atribuiu à palavra de origem latina um significado subjetivo e relacional, pelo qual indica “o ser humano em quanto capaz de relação, de estar como um eu diante de um tu”. A fórmula latina “uma pessoa” apareceu portanto, mais fecunda com relação à correspondente grega “uma hipóstase”, porque esta última pode dizer-se de cada objeto existente, enquanto que “pessoa” pode referir-se somente a um ser humano e, por analogia, divino.
Aplicando o discurso para o relacionamento com Cristo, padre Cantalamessa explica que “dizer que Jesus é ‘uma pessoa’ significa também dizer que ressuscitou, que vive, que está diante de mim, que posso tratar-lhe com intimidade como ele a mim. É preciso passar continuamente, no nosso coração e na nossa mente, do Jesus personagem ao Jesus pessoa. A personagem é alguém de quem se pode falar e escrever o que quiser, mas a quem e com quem, no geral, não é possível conversar”. O pregador da Casa Pontifícia introduz portanto um elemento essencial no seu discurso, e afirma que “é possível ter Jesus por amigo, porque, tendo ressuscitado, ele está vivo, está do meu lado, posso relacionar-me com ele como dois seres vivos o fazem, um presente a um presente. Não com o meu corpo e nem mesmo somente com a fantasia, mas ‘no Espírito’ que é também infinitamente mais íntimo e real do que ambos”.
Infelizmente, considera o capuchinho, é raro pensar em Jesus nestes termos, ou seja, como um amigo, um confidente. Esquecemos que, sendo “verdadeiro homem”, Ele “possui em sumo grau o sentimento da amizade que é uma das qualidades mais nobres do ser humano. É Jesus que deseja um tal relacionamento conosco”, não chamando-nos mais servos, mas amigos (cf. Jo 15, 15).
Na sua vida terrena, Cristo estabeleceu relações de verdadeira amizade somente com alguns, embora amasse a todos indistintamente. Agora, como ressuscitado, “não está mais sujeito às limitações da carne” mas, continua padre Cantalamessa, “oferece a cada homem e a cada mulher a possibilidade de tê-lo como amigo, no sentido mais pleno da palavra”. A quarta pregação da Quaresma conclui, portanto, com o desejo de que o Espírito Santo “nos ajude a acolher com maravilha e alegria esta possibilidade que preenche a vida”.
[Trad.TS]

SANTO AMBRÓSIO E A FÉ NA EUCARISTIA


Texto da 3ª Pregação Quaresmal na Casa Pontífícia - Frei Raniero Cantalamessa
1. A reflexão sobre os sacramentos
Junto do tema da Igreja, outro tema sobre o qual se nota um progresso na passagem dos Padres gregos aos latinos é aquele dos sacramentos. Nos primeiros tinha faltado uma reflexão sobre os sacramentos em si, ou seja, sobre a ideia de sacramento, embora tendo tratado de forma excelente de cada mistério: batismo, unção, eucaristia[1].
O iniciador da teologia sacramental – daquilo que, a partir do século XII, será o De sacramentis” – é ainda mais uma vez Agostinho. Santo Ambrósio com as suas duas séries de discursos Sobre os sacramentos” e “Sobre os mistérios”, antecipa o nome do tratado, mas não o seu conteúdo. Também ele, de fato, se ocupa de cada sacramento e não ainda dos princípios comuns a todos os sacramentos: ministro, matéria, forma, modo de produzir a graça…
Então, por que escolher Ambrósio como mestre de fé de um tema sacramental como é aquele da Eucaristia sobre o qual queremos hoje meditar? A razão é que Ambrósio é aquele que mais do que qualquer outro tem contribuído para o fortalecimento da fé na presença real de Cristo na Eucaristia e lançou as bases para a futura doutrina da transubstanciação. No De sacramentis escreve:
“Este pão é pão antes das palavras sacramentais; quando acontece a consagração, de pão torna-se carne de Cristo [...] Com quais palavras se realiza a consagração e de quem são essas palavras? [...] Quando se realiza o venerável sacramento, já não é mais o sacerdote que usa as suas palavras, mas usa as palavras de Cristo. É, portanto, a palavra de Cristo que realiza este sacramento”[2].
No outro escrito, Sobre os mistérios, o realismo eucarístico é ainda mais explícito. Diz:
“A palavra de Cristo que pôde criar do nada o que não existia, não pode transformar em algo diferente aquilo que existe? De fato, não é algo menor dar às coisas uma natureza totalmente nova do que mudar aquela que já tem [...]. Este corpo que produzimos (conficimus) sobre o altar é o corpo nascido da Virgem. [...] Com certeza é a verdadeira carne de Cristo que foi crucificada, que foi sepultada; é, portanto, realmente o sacramento da sua carne [...]. O próprio Senhor Jesus proclama: ‘Este é o meu corpo’. Antes da bênção das palavras celestes usa-se o nome de outro objeto, depois da consagração significa corpo”[3].
Sobre este ponto a autoridade de Ambrósio, no desenvolvimento posterior da doutrina eucarística, prevaleceu sobre aquela de Agostinho. Este certamente acredita na realidade da presença de Cristo na Eucaristia, mas, como vimos na meditação passada, acentua ainda mais fortemente o seu significado simbólico e eclesial. Alguns dos seus discípulos chegarão a afirmar não só que a Eucaristia faz a Igreja, mas que a Eucaristia é a Igreja: “Comer o corpo de Cristo, não é nada mais do que tornar-se o corpo de Cristo”[4]. A reação à heresia de Berengário de Tours que reduzia a presença de Jesus na Eucaristia a uma presença só dinâmica e simbólica, provocou uma reação unânime na qual as palavras de Ambrósio tiveram um papel importante. Ele é a primeira autoridade que Santo Tomás de Aquino cita na sua Somma em favor da tese da presença real[5].
A expressão “corpo místico” de Cristo, que até agora tinha servido para designar a Eucaristia, passou aos poucos a indicar a Igreja, enquanto que a expressão “verdadeiro corpo” normalmente foi reservada somente à Eucaristia[6]”. Esta particular inversão marca, de certa forma, o triunfo da herança de Ambrósio sobre aquela de Agostinho. Expressões como aquelas do hino Ave verum, onde o corpo eucarístico de Cristo é saudado como “o verdadeiro corpo, nascido da Virgem Maria, que foi imolado na cruz e de cujo lado jorraram água e sangue”, parecem tiradas quase totalmente das palavras mencionadas acima por Ambrósio.
Podemos resumir dessa forma a diferença entre as duas perspectivas. Dos três corpos de Cristo – o corpo verdadeiro ou histórico de Jesus nascido de Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial – Agostinho une estreitamente o segundo e o terceiro, o corpo eucarístico e aquele da Igreja, diferenciando-os do corpo real e histórico de Jesus; Ambrósio une, de fato identifica , o primeiro com o segundo, ou seja, o corpo histórico de Cristo e aquele eucarístico, distinguindo-os do terceiro, ou seja, do corpo eclesial.
Neste sentido, se poderia ir muito além, caindo em um realismo exagerado, quase que – como dizia uma fórmula contrária à heresia de Berengário – o corpo e o sangue de Cristo estivessem presentes no altar “sensivelmente e fossem, na verdade, tocados e partidos pelas mãos do sacerdote e mastigados pelos dentes dos fieis[7]”. Mas o remédio de tal perigo estava na mesma noção de sacramento já claro na teologia. Que a Eucaristia não é uma presença física, mas sacramental, mediada por sinais que são, de fato, o pão e o vinho.
2. A Eucaristia e a Beraka judaica
Se existe um limite na visão de Ambrósio, esse é a ausência de qualquer referência à ação do Espírito Santo na produção do corpo de Cristo sobre o altar. Toda a eficácia reside nas palavras da consagração. Elas são para ele palavras criativas, ou seja, palavras que não se limitam a afirmar uma realidade existente, mas produzem a realidade que significam, como a frase “fiat lux” da criação. Isso influenciou na pouca importância que teve na liturgia latina a epiclese do Espírito Santo, que desempenha, pelo contrário, nas liturgias orientais um papel essencial como aquele das palavras da consagração.
As novas Orações Eucarísticas fizeram explícito, sobre esse ponto, o que no Cânone romano somente era mencionado implicitamente. A frase: “Santifica, oh Deus, esta oferta com a potência da tua benção”, equivale na verdade a dizer: “Santifica, Oh Deus, esta oferta com a potência do teu Santo Espírito”, e talvez teria sido melhor, no momento de traduzir o Cânone romano nas línguas modernas, explicitar neste sentido o significado da frase, de modo que nem sequer esta venerável oração eucarística ficasse sem uma verdadeira epiclese ao Espírito Santo.
Mas há uma lacuna maior, da qual se começa a dar-se conta, e que não diz respeito só a Ambrósio e nem sequer somente aos Padres latinos, mas à explicação do mistério eucarístico no seu todo. Mais do que nunca, vemos aqui como o estudo dos Padres não só nos ajuda a recuperar tesouros antigos, mas também a abrir-nos ao novo que emerge na história; a imitá-los não só no conteúdo, mas também no método que era o de colocar a serviço da palavra de Deus todos os recursos e os conhecimentos disponíveis no seu contexto cultural.
O novo recurso que temos hoje para compreender a Eucaristia é a aproximação entre cristãos e judeus. Desde os primeiros dias da Igreja, vários fatores históricos levaram a acentuar a diferença entre o cristianismo e o judaísmo, até contrapô-los entre si, como faz já Ignácio de Antioquia[8]. Destacar-se dos hebreus – na data da Páscoa, nos dias de jejum, e em tantas outras coisas – se torna uma espécie de palavra de ordem. Uma acusação frequentemente direcionada aos próprios adversários e aos hereges é aquela de “judaizar”.
A respeito da Eucaristia, o novo clima de diálogo com o judaísmo tornou possível uma melhor compreensão da sua matriz hebraica. Como não é possível entender a Páscoa cristã, a menos que seja considerada como o cumprimento do que a Páscoa hebraica prenunciava, assim não é possível compreender completamente a Eucaristia se ela não é vista como o cumprimento do que os hebreus faziam e diziam ao longo da sua refeição ritual. O próprio nome Eucaristia não é nada mais do que a tradução de Beraka, a oração de bênção e agradecimento feita durante esta refeição. Um primeiro resultado importante dessa mudança foi que hoje nenhum estudioso sério avança mais na hipótese de que a Eucaristia cristã seja explicada à luz da ceia em voga em alguns cultos mistéricos do helenismo, como se tem tentado fazer por mais de um século.
Os Padres da Igreja conservam as Escrituras do povo hebraico, mas não a sua liturgia, à qual não podiam mais participar, depois da separação da Igreja da Sinagoga. Assim, para a Eucaristia utilizaram as figuras contidas nas Escrituras – o cordeiro pascal, o sacrifício de Isaac, o de Melquisedec, o maná -, mas não o concreto contexto litúrgico no qual o povo hebraico celebrava todas estas memórias que era a refeição espiritual celebrada, uma vez por ano, na ceia pascal (o Seder) e semanalmente no culto da sinagoga. O primeiro nome pelo qual a Eucaristia foi designada por Paulo no Novo Testamento é o de “refeição do Senhor” (kuriakon deipnon) (1 Cor 11, 20), com evidente referência à refeição hebraica pela qual se diferencia já pela fé em Jesus.
É a perspectiva em que se coloca também Bento XVI no capítulo dedicado à Instituição da Eucaristia no seu segundo volume sobre Jesus de Nazaré. Seguindo a opinião agora predominante dos estudiosos, ele aceita a cronologia joanina segundo a qual a ceia de Jesus não foi uma ceia pascal, mas foi uma solene refeição de adeus; com Lous Bouyer, também Bento XVI acredita que seja possível “traçar o desenvolvimento da eucharistia cristã, isto é, do cânone, da beraka hebraica[9]”.
Por várias razões culturais e históricas, a partir da Escolástica, tentou-se explicar a Eucaristia à luz da filosofia, especialmente das noções aristotélicas de substância e acidente. Também isso era um colocar a serviço da fé os conhecimentos novos do momento e, portanto, um imitar o método dos Padres. Nos nossos dias, temos que fazer o mesmo com os novos conhecimentos de ordem, desta vez, históricas e litúrgicas mais do que filosóficas.
Com base nos estudos já realizados nessa direção, especialmente o de L. Bouyer[10], gostaria de mostrar a luz intensa que recai sobre a Eucaristia cristã quando colocamos as narrações evangélicas da instituição sobre o fundo do que sabemos da refeição espiritual hebraica. A novidade do gesto de Jesus não será diminuída, mas exaltada ao máximo.
3. O que aconteceu naquela noite
Um texto que mostra os laços estreitos entre a liturgia judaica e a ceia cristã é a Didaqué. Este texto não é nada mais do que uma coleção de orações da sinagoga, com o acréscimo, aqui e ali, das palavras “pelo teu servo Jesus Cristo”; o resto é idêntico à liturgia da sinagoga. O rito sinagogal era composto por uma série de orações chamadas “berakah” que em grego é traduzido por “Eucaristia”. A beraka resume a espiritualidade da antiga Aliança e é a resposta de benção e de ação de graças que Israel dá à palavra de amor dirigida-lhe pelo seu Deus.
O rito seguido por Jesus ao instituir a Eucaristia acompanhava todas as refeições dos Hebreus, mas assumia uma particular importância nas refeições em família ou em comunidade no sábado e nos dias festivos. No início da refeição, cada um por sua vez tomava pela mão uma taça de vinho e, antes de leva-la aos lábios, repetia uma benção que a liturgia atual nos faz repetir quase literalmente no momento do ofertório: “Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei dos séculos, que nos destes este fruto da videira”. É o primeiro cálice de vinho.
Mas a refeição começava oficialmente só quando o pai de família ou o chefe da comunidade tinha partido o pão que tinha que ser distribuído entre os convidados. E, de fato, Jesus, logo após a frase, toma o pão, recita a benção, parte-o e o distribui dizendo: “Este é o meu corpo…” E aqui o rito, que era somente uma preparação, se torna realidade. Depois da benção do pão, que era considerada como uma benção geral por todo o alimento, serviam-se os pratos de costume.
Se os precedentes da Eucaristia se encontram na refeição ritual dos Judeus, então não tem mais significado especial saber se a festa da Páscoa coincidia com a Quinta-feira Santa ou com a Sexta-feira Santa. Jesus não associou a Eucaristia com nada particular próprio do alimento da Páscoa (deixando de lado a incompatibilidade da data, não há qualquer referência ao consumo do cordeiro e das ervas amargas), mas apenas com aqueles elementos que fazem parte do rito de cada dia: ou seja, a fração do pão no começo e com a grande oração de ação de graças no final. O caráter pascal da última ceia é inegável, mas é independente destas discussões e se explica com o nexo que Jesus coloca entre a Eucaristia (“o meu sangue derramado por vós”) e a sua morte de cruz. É ali que se realiza, de acordo com João, a figura do cordeiro pascal ao qual “não se quebra nenhum osso” (Jo 19,36).
Mas voltando ao ritual hebraico. Quando o jantar está acabando e as iguarias foram consumidas, os comensais estão prontos para o grande ato ritual que conclui a celebração e dá o significado mais profundo. Todos lavam as mãos, como no começo. Estava prescrito que o presidente recebesse a água do mais jovem dos presentes e talvez João a tenha dado a Jesus. Mas, o Mestre, em vez de deixar-se servir, dá uma lição de humildade, lavando os seus pés. Terminado isso, tendo diante de si uma taça convida a fazer as três orações de agradecimento: a primeira por Deus criador, a segunda pela libertação do Egito, a terceira para que continue no presente a sua obra. Concluída a oração, a taça passava de mão em mão e cada um bebia. Eis o rito antigo, realizado tantas vezes por Jesus em vida.
Lucas diz que depois de ter ceado Jesus tomou o cálice dizendo: “Este cálice é a nova aliança no meu Sangue que é derramado por vós”. Algo decisivo acontece quando Jesus acrescenta a estas palavras a fórmula das orações de agradecimento, ou seja, a beraka hebraica. Aquele rito era um banquete sacro no qual se celebrava e se agradecia um Deus salvador, que tinha redimido o seu povo para estreitar com ele uma aliança de amor, concluída no sangue de um cordeiro. O alimento cotidiano abençoava a Deus por aquela Aliança, mas agora, do momento em que Jesus decide dar a vida pelos seus como o verdadeiro cordeiro, ele declarou concluída aquela antiga Aliança que todos juntos estavam celebrando liturgicamente.
Naquele momento, com poucas e simples palavras, ele abre, oferece e estreita com os seus a nova e eterna Aliança no seu Sangue. Quando Jesus passa aquele cálice é como se dissesse: “Até agora, todas as vezes que tivestes celebrado esta refeição ritual tivestes comemorado o amor de Deus Salvador que vos redimiu do Egito. A partir de agora, toda vez que repetirdes o que fizemos hoje, o fareis não mais em comemoração de uma salvação da escravidão material no sangue de um animal; o fareis em memória de mim, filho de Deus que dá o seu Sangue para redimir-vos dos vossos pecados. Até aqui tivestes comido alimento normal para celebrar uma libertação material; agora comereis a mim, alimento divino sacrificado por vós, para fazer-vos uma só coisa comigo. E me comereis e bebereis o meu Sangue, no mesmo ato em que eu me sacrifico por vós. Esta é a nova e eterna Aliança no meu amor”.
Acrescentando as palavras “fazei isto em memória de mim”, Jesus dá um alcance ilimitado ao seu dom. Do passado, o olhar se projeta ao futuro. Tudo o que ele fez até agora na ceia é colocado nas nossas mãos. Repetindo o que ele fez, se renova aquele ato central da história humana que é a sua morte pelo mundo. A figura do cordeiro pascal que sobre a cruz se torna evento, na ceia nos é dado como sacramento, ou seja, como memorial perene do evento. O evento acontece apenas uma vez (semel). (Hb 10,12), o sacramento, sempre que o quisermos (quotiescumque) (1 Cor 11,26).
A idéia do “memorial” que Jesus retoma do ritual hebraico do sábado e dos dias festivos, referida em Êxodos 12, 14 contém a própria essência da Missa, a sua teologia, o seu significado íntimo para a salvação. O memorial bíblico é muito mais do que uma simples comemoração, do que uma simples lembrança subjetiva do passado. Graças a ele, intervém, fora da mente do orante, uma realidade que tem uma existência própria, que não pertence ao passado, mas existe e obra no presente e continuará a obrar no futuro. O memorial que até agora era o compromisso da fidelidade de Deus a Israel, agora é o corpo partido e o sangue derramado do Filho de Deus; é o sacrifício do Calvário “representado” (ou seja, tornado novamente presente) para sempre e para todos.
Aqui descobre-se o significado e a preciosidade da insistência de Ambrósio e, atrás dele, de forma mais evoluída, dos teólogos escolásticos e do concílio de Trento, sobre a presença “verdadeira, real e substancial de Cristo” na Eucaristia[11]. Só assim, de fato, é possível manter no “memorial” instituído por Jesus o seu caráter objetivo de dom absoluto, sem condições, independente de tudo, até mesmo da fé de quem o recebe.
4. A nossa assinatura no dom
Qual é o nosso lugar no drama humano-divino que temos lembrado? A nossa reflexão sobre a Eucaristia deve levar -nos a descobrir justamente isso. É para nós, de fato, para envolver-nos na sua ação, que Jesus fez do seu dom um “sacramento”.
Na Eucaristia acontecem dois milagres: um é aquele que faz do pão e do vinho o corpo e o sangue de Cristo, o outro é aquele que faz de nós “um sacrifício vivo agradável a Deus”, que nos une ao sacrifício de Cristo, como autor, e não apenas como espectadores. No ofertório oferecemos o pão e o vinho que para Deus não tinham, é claro, nem valor nem significado por si mesmos. Agora, na consagração, é Cristo que coloca aquele valor que eu não posso colocar na minha oferta. Neste momento pão e vinho se tornam Corpo e Sangue de Cristo que se entrega à morte em um supremo ato de amor ao Pai.
Eis então o que aconteceu: o meu pobre dom privado de valor tornou-se o dom perfeito para o Pai. Jesus não dá somente a si mesmo no pão e no vinho, também nos pega e nos transforma (misticamente, não realmente) em si mesmo, também nos dá o valor que tem o seu dom de amor ao Pai. Naquele pão e naquele vinho estamos também nós; “Naquilo que oferece, a Igreja oferece a si mesma”, escreve Agostinho[12].
Gostaria de resumir, com a ajuda de exemplo humano, o que acontece na celebração eucarística. Pensemos em uma grande família em que há um filho, o primogênito, que admira e ama desmedidamente seu próprio pai. Para o seu aniversário deseja fazer-lhe um presente precioso. Antes, porém, de apresenta-lo pede, em segredo, a todos os seus irmãos e irmãs que coloquem a sua assinatura nesse dom. Este chega, portanto, nas mãos do pai como sinal do amor de todos os seus filhos, sem distinção, mesmo que, na verdade, só um pagou o preço dele.
É o que acontece no sacrifício eucarístico. Jesus admira e ama infinitamente o Pai Celestial. A ele quer fazer a cada dia, até o fim do mundo, o dom mais precioso que se possa pensar, aquele da sua própria vida. Na Missa ele convida todos os seus “irmãos” a colocarem a sua assinatura no dom, de modo que ele chega a Deus Pai como o dom indistinto de todos os seus filhos, mesmo que só um tenha pagado o preço de tal dom. E que preço!
A nossa assinatura são as poucas gotas de água que são misturadas ao vinho no cálice; a nossa assinatura, explica Agostinho, é especialmente o amém que os fieis pronunciam no momento da comunhão: “Àquilo que sois respondeis: Amém e respondendo o assinais. Ouves, de fato: O corpo de Cristo, e respondes: Amém. Sejas membro do corpo de Cristo, para que seja verdadeiro o seu Amém… Sejais aquilo que vês e recebeis aquilo que sois[13]”. Toda a eclesiologia eucarística de Agostinho que lembramos semana passada encontra aqui o seu campo de aplicação. Se não é possível dizer que a Eucaristia é a igreja (como chegam a afirmar alguns dos seus discípulos), pode-se e deve-se dizer que a Eucaristia faz a Igreja.
Sabemos que quem assinou um compromisso tem o dever de honrar a própria firma. Isso significa que, saindo da Missa, temos que fazer também nós da nossa vida um dom de amor ao Pai e aos irmãos. Temos que dizer também nós, mentalmente, aos irmãos: “Tomai, comei; este é o meu corpo”. Tomai o meu tempo, as minhas capacidades, a minha atenção. Tomai também o meu sangue, ou seja, os meus sofrimentos, tudo o que me humilha, me mortifica, limita as minhas forças, a minha mesma morte física. Quero que toda a minha vida seja, como aquela de Cristo, pão partido e vinho derramado pelos outros. Quero fazer de toda a minha vida uma eucaristia.
Recordei a Didaqué, como o texto que documenta a fase de transição da liturgia hebraica para aquela cristã. Terminamos com uma oração sua que inspirou tantas orações eucarísticas subsequentes:
“Como este pão partido estava
espalhado sobre as colinas e recolhido tornou-se
uma só coisa,
Assim a tua Igreja se recolha dos
confins da terra no teu reino
porque tua é a glória e a potência
por Jesus Cristo nos séculos”. Amem
[Tradução Thácio Siqueira / ZENIT]
[1] Cf. J. Kelly, Il pensiero cristiano delle origini, cit., pp. 415 ss.
[2] Ambrósio, De sacramentis, IV,14-16.
[3] Ambrósio, De mysteriis, 52-53.
[4] Guglielmo di Saint-Thierry, PL 184, 403.
[5] Cf. S. Th., III, q.LXXV. aa. 1 ss.
[6] É o processo reconstruído por H. de Lubac, in Corpus Mysticum. L’Eucharistie et l’Eglise au Maoyen Age, Aubier, Paris 1949
[7] Denzinger-Schoenmetzer, Enchiridion Symbolorum, nr. 690
[8] Ignacio de Antiquioa, Epístola aos Magnésios, 10,3.
[9] J. Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré, vol .II, LEV, Roma 2011, p.132-163; cf. L. Bouyer, Eucharistie. Théologie et spiritualità de la prière eucharistique. Desclée, Tournai 1966
[10] Além do livro citado de L. Bouyer, cf. A. Baumstark, Liturgie comparée, Chevetogne 1953; L. Alonso Schoekel, Meditaciones biblicas sobre la Eucaristia, Sal Terrae, Santander 1986 ; Seung Ai Yang, “Les repas sacrés dans le Judaisme de l’époque hellénistique”, in Encyclopedie de l’Eucaristie, du Cerf, Paris 2000, pp. 55-59.
[11] Cf. Conc. Tridentino, Canon 1 de SS. Eucharistiae sacramento (DS, 1651).
[12] Agostinho, De civitate Dei, X, 6 (CCL 47, 279 (“ In ea re quam offert, ipsa offertur”).
[13] Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 s.)

Os demônios do apostolado

“Sejam advertidos, pois, os que são muito ativos, que pensam abarcar o mundo com suas pregações e obras exteriores, que fariam muito mais bem á Igreja e agradariam muito mais a Deus, sem falar no bom exemplo que dariam, se gastassem ao menos a metade deste tempo em estar com Deus em oração… Com isso, fariam mais e com menos trabalho com uma só obra do que com mil, alcançando merecimento de sua oração e recobrando forças espirituais com ela; do contrário, tudo não passa de agitação, de fazer pouco mais que nada e, às vezes, nada e, outras vezes, dano”(São João da Cruz)

Preâmbulo

Uma boa prática profissional, para que seja eficaz, humanizadora e aceitável aos seus beneficiados, requer competência científica e certos valores da parte do profissional.
Um médico deve ser competente: sem competência, ele não pode prestar um serviço à saúde e sua profissão se torna ineficiente; para ter êxito, requer também certas qualidades e atitudes de espírito: inspirar confiança, estar disponível ao enfermo, ter tino, ser confidente… Este conjunto de valores conformam o que se chamaria em linguagem cristã “a espiritualidade” de um médico.
O apostolado, a “profissão apostólica”, exige condições análogas: competência e uso de métodos pertinentes, certos conteúdos e temas que é preciso conhecer, uma mensagem adequada a transmitir… Exige, igualmente, certas atitudes, convicções e valores espirituais da parte do apóstolo. É o que propriamente constitui a “espiritualidade” de um médico.
Entretanto, o apostolado, por sua própria natureza, é diferente de qualquer outra profissão ou atividade: sua espiritualidade é essencial para sua eficácia: a atitude do apóstolo é condição necessária para o fruto de seu apostolado.
Pois, um médico competente, ainda que seja medíocre de espírito e eticamente falando, pode ter êxito e curar pacientes. Mas um apóstolo carente de espírito, normalmente não alcançará êxito decisivo e profundo, a não ser aparente. Dizemos “normalmente”, porque pode suceder que Deus, em sua bondade, faça grandes coisas através de um servidor medíocre. Na realidade, aqui o espírito é mais necessário do que a habilidade.
Por que as coisas são assim? Basicamente porque o apostolado é uma profissão de Deus feito homem, e não é uma profissão humana. Seu objeto é transmitir o caminho, a verdade e a vida de Deus e não a do ser humano. Por isso, Jesus Cristo é o único apóstolo, e os seres humanos são apóstolos na medida em que Jesus os chama para tal e lhes comunica seu poder.
Daí que o espírito e os valores do apóstolo, vêm total e unicamente de sua relação com Jesus Cristo: ele é um eleito dele, seu enviado e seu instrumento, ao mesmo tempo livre e dependente do poder apostólico de Deus. Daí nascem todas as atitudes, os valores e as convicções que configuram a espiritualidade do apostolado.
Estes valores, os encontramos em Jesus, que é sua fonte e modelo, e nos santos por imitação de Cristo. Naqueles que ainda não são santos, estes valores também estão presentes, mas mesclados com incoerências múltiplas e com tentações mais ou menos consentidas. Por isso, um bom modo de conhecer o espírito do apostolado é conhecer as incoerências e tentações a que está submetido. O espírito bom ressalta por contraste com o espírito mau, e se conhece melhor uma virtude, ao conhecer os “demônios” que a tentam.
Vejamos alguns dos “demônios” mais corriqueiros do apostolado. Para identificá-los, sirvamo-nos da experiência, vista a partir do ideal cristão do apostolado. Através das tentações, este ideal revelar-se-á a nós por contraste, como a sombra revela a luz.
1. O Messianismo
O demônio do messianismo induz o apóstolo a constituir-se no centro de toda atividade pastoral em que está engajado. É uma tentação que vai penetrando sutilmente sua vida, até levá-lo a sentir-se indispensável em tudo.
O messianismo constitui basicamente uma atitude deficiente em relação a Deus: eu sou o “piloto” e o Senhor é o “co-piloto” ajudante. Quem cai nesta tentação, não é que deixe de levar Deus em conta, de rezar e de recorrer a ele diante dos problemas, mas o faz para que Deus simplesmente lhe ajude no apostolado que ele próprio dirige e planeja. Em última análise, se busca incorporar o Senhor em nosso trabalho e não de incorporarmo-nos no trabalho de Deus, que é o específico do apostolado: Deus é o “piloto”, e eu sou o “co-piloto” ajudante. Trata-se, inconscientemente, de substituir o messianismo de Cristo, o único evangelizador, pelo nosso messianismo pessoal.
Esta atitude diante de Deus, se projeta numa atitude deficiente também para com os demais que colaboram conosco. Tornamo-nos incapazes de delegar responsabilidades ou tarefas: não confiamos verdadeiramente nas pessoas, com exceção de uns poucos, habitualmente réplica fiel de nós mesmos, acabando rodeados unicamente por eles. É uma tendência que costuma agravar-se no transcurso dos anos.
Existe sempre uma relação entre a atitude diante de Deus e a atitude frente aos outros e vice-versa. Assim, a desconfiança nos colaboradores do apostolado, reflete uma desconfiança em Deus, que é justamente o que vai implícito no demônio do messianismo. Pois, confiar realmente em Deus, supõe uma confiança prudencial nos outros. E, por sua vez, a confiança nos outros também implica Deus, pois foi ele quem os foi chamando e colocando-os como companheiros nossos de trabalho.
O messianismo tem também conseqüências negativas nos resultados externos do apostolado, ao menos a longo prazo, além de comprometer o fruto profundo da evangelização. Em primeiro lugar, a atitude messiânica não deixa os outros crescerem, uma vez que a expansão e maturação da obra apostólica não caminham paralelamente, como devia ser, com a maturidade e crescimento daqueles que a levam a cabo. Em segundo lugar, sucede, então,  que as iniciativas e criações do apostolado messiânico, não contribuem necessariamente para formar pessoas, nem para preparar sucessores. Normalmente, o apóstolo messiânico se identifica a tal ponto com sua obra que, quando ele desaparece ou se translada, ela se acaba: era demasiadamente pessoal e não havia substitutos preparados.
O verdadeiro apostolado que constrói o Reino de Deus a partir da Igreja ali onde ela ainda não está, contribui sempre para fazer desabrochar a própria Igreja: seus evangelizadores e comunidades. Também se aprende a ser cristão aprendendo a evangelizar, e isso não é possível sem realmente assumir responsabilidades. Um apóstolo maduro revela, entre outras coisas, que alguém confiou nele.
2. O Ativismo
O demônio do ativismo não significa ser muito ativo ou muito trabalhador, ou ter muitas ocupações e apostolados diversos. Ser ativo, apostólico, não é ser “ativista” como tentação.
O ativismo se produz na medida em que aumenta a distância e a incoerência entre o que um apóstolo faz e diz, entre o que ele é e o que ele vive como cristão. É verdade que na condição humana aceitamos como normal a inadequação entre o “ser” e o “agir” mas, no caso do ativismo, ela é acentuada e tende a crescer, não a diminuir, como seria o ideal do processo cristão.
O ativismo tem muitas expressões. Uma delas é a falta de renovação na vida pessoal do apóstolo. Neste caso, normalmente a oração é insuficiente e deficiente. Não há momentos prolongados de silêncio e retiro. Não se cultiva o estudo, apenas se lê. Nem sequer se deixa tempo para descansar o suficiente e repor-se. Paralelamente, há sobrecarga de trabalho, de atividades múltiplas, e a agenda de compromissos costuma estar cheia. O ativista dá a impressão de que é necessário, como estilo de vida, um grande volume de trabalho externo. Daí a criação de um círculo vicioso, cuja origem – excessiva atividade ou negligência em renovar-se – não é fácil identificar: por um lado está o aumento de atividades que faz cada vez mais difícil tomar as medidas de renovação interior, e que são as que conduzem ao crescimento no “ser”; por outro lado a incapacidade (que tende a crescer) de renovar-se tende a compensar-se e disfarçar-se com a entrega a um ativismo desenfreado. Em última análise, o ativismo é a desculpa do “escapismo”.
O ativismo também se exprime numa das distorções mais radicais do apostolado: colocar toda a alma nos meios de ação e de apostolado, no que se organiza e se faz, esquecendo-se de Deus, quem é, afinal de contas, por quem se faz, se organiza e se trabalha. Com isso, o apóstolo se transforma num profissional que multiplica iniciativas, habitualmente boas, não parando para discernir, para perguntar a Deus se são necessárias ou oportunas ou se é preciso fazê-las agora e desta maneira. Assim, os meios do apostolado acabam obscurecendo seu sentido e seu fim.
Outra expressão do demônio do ativismo é não trabalhar ao ritmo de Deus, substituindo-o pelo próprio ritmo. Isso ocorre quando se vai mais rápido ou mais lento do que Deus. Normalmente, o ativista, pelo menos num primeiro momento, costuma pecar por aceleração. É o resultado da desproporção, sempre existente, entre a visão e os projetos do apóstolo e a realidade das pessoas envolvidas. O normal é que um agente de pastoral tenha mais visão que sua comunidade e que seu povo, e saiba antes e melhor que eles onde e como chegar. Além disso, as pessoas não respondem ao ritmo que a gente quer, pois o ritmo do crescimento corresponde ao ritmo de Deus e não das previsões da gente. O ritmo de Deus é constante, mas de um processo lento. Os seres humanos, como as plantas e o resto da criação, não mudam e nem crescem à força, artificialmente, queimando etapas. É preciso esperar e ter paciência sem, com isso, deixar de educar, cultivar e exigir: é preciso ser como Deus, adequando-nos ao seu ritmo e forma de agir e transmitir a vida.
Pedagogicamente, esta forma de ativismo pode ser desastrosa. Ao acelerar o ritmo das pessoas e dos processos, não somente se dificulta o crescimento destas pessoas, como se pode também destruir e “queimar” muitas delas; outras se afastarão e será muito difícil recuperá­-las. Em todo caso, dado o aparente fracasso de seu projeto, o ativista, uma vez tendo experimentado o demônio da impaciência apostólica, facilmente cai na tentação do desânimo. “Aqui, com essa gente, não se pode fazer nada”. Pois, a impaciência e o desânimo são gêmeos. Ambos são filhos do orgulho, da auto-suficiência, do esquecer que “tanto o que planta como o que rega não são nada, e sim Deus que faz crescer” (1 Cor 3,7).
3. Fazer da confiança em Deus uma farsa
A principal característica deste demônio do apostolado é, obviamente, esquecer que a desconfiança na gente mesmo, acompanhada por uma total confiança em Deus, é a essência da espiritualidade do apóstolo. A tentação é pôr a confiança em Deus num segundo plano, como um recurso em caso de necessidade e de emergência, esquecendo de fazê-lo presente nos apostolados ordinários e cotidianos. Ao não colocar a confiança em Deus, com toda a convicção da alma, se está pondo a confiança na gente mesmo, ainda que se diga o contrário. Quando se trata dos resultados profundos e teológicos da evangelização (o Reino da graça) e não de resultados psicológicos ou de pura influência humana, é preciso confiança absoluta no Senhor e desconfiança absoluta na gente mesmo. No apostolado, as duas confianças não podem fazer-se presentes simultaneamente: ou se confia realmente em Deus e se desconfia da gente, ou se confia na gente e se desconfia de Deus.
Desconfiança ou confiança na gente é aqui uma qualidade teológica e não psicológica. Isto é, não se trata de ser inseguro, com complexo de inferioridade, não reconhecer dons e condições humanas e de vida cristã que Deus nos deu, certamente em abundância. A confiança humana e psicológica é necessária ao apóstolo. A desconfiança de que estamos falando está num outro nível, no âmbito dos frutos do Espírito. E paradoxalmente, uma autêntica confiança no Deus do apostolado comunica ao apóstolo a confiança psicológica que lhe pode faltar diante da evidência de suas limitações humanas.
O evangelizador que colocou sua confiança nele mesmo e não no Senhor, como atitude habitual e profunda (tão profunda que muitas vezes nem percebe mais que Deus está presente, tornando-se cego em sua auto-suficiência), reforça esta tentação com certos tipos de êxito proporcionados pelas suas qualidades humanas e sua influência. Ora, as atividades apostólicas seguem as leis da eficácia humana, que é sempre exitosa num primeiro momento, mas que nem sempre está ligada à graça e à obra permanente de Deus. Todos conhecemos evangelizadores inteligentes, preparados e com muitas qualidades, que exerciam grande atração e influência. Talvez por esta razão, colocavam sua confiança apostólica em si mesmos, mais do que em Deus. Evangelizadores estes, que durante alguns anos brilharam no apostolado. Eram convidados para pregar retiros e dar conferências, suscitaram vocações sacerdotais e tiveram muitos seguidores. Num determinado momento, surgiram algumas contradições e fracassos e, quase da noite para o dia, se apagaram. E mais, muitos de seus jovens seguidores, com o tempo, se distanciaram da Igreja. Os grupos e comunidades que tinham formado não perseveraram e as vocações que haviam suscitado foram se retirando do seminário… O que aconteceu? Deus deu-lhes a entender “Eu não estou contigo”. Deus deixou este apóstolo sozinho, revertendo sua promessa de “estarei convosco até o final dos tempos” (Mt 28,20). Apenas concedeu-lhe os resultados de sua auto-suficiência.
O colocar a confiança primeiramente em Deus e não na gente mesmo, tem uma caricatura: recorrer à confiança de Deus nas ocasiões em que a gente não fez o que devia fazer na atividade apostólica, ou em momentos que a gente se comportou de maneira irresponsável ou não se preparou como devia. Estas confianças oportunistas são uma manipulação da verdadeira confiança em Deus. Ora, a confiança, para que seja autêntica, supõe que o apóstolo tenha se preparado e trabalhado como se tudo dependesse dele e que, uma vez feito tudo o que estava ao seu alcance, às vezes até ao heroísmo, não põe sua confiança em seu trabalho e em sua preparação, mas no poder de Deus.
4. Não confiar na força da verdade
Este demônio é uma variante da pouca confiança em Deus, ainda que seja uma tentação com características próprias.
A verdade cristã, exposta por Cristo e transmitida pelo magistério da Igreja, apresenta desafios doutrinais e morais que hoje vão na contracorrente das ideologias e dos critérios éticos das culturas dominantes e secularizadas. Verdades como a vida depois da morte, a confiança na providência amorosa de Deus, o valor positivo do sofrimento, da cruz ou da austeridade, a necessidade, às vezes, de crer ou de aceitar sem entender, assim como o valor da castidade ou da virgindade, da preservação do matrimônio ou da defesa da vida, ainda que em casos extremos, não são hoje afirmações “populares”. Inclusive para os que crêem nelas, não deixam de ser uma pedra de tropeço quando lhes afetam pessoalmente.
Ora, diante disso, todo apóstolo está exposto à tentação de vacilar, de não oferecer a verdade de Cristo tal como ela é (ainda com as necessárias considerações pedagógicas de tempo, oportunidade, etc.), supondo que ela não vai ser seguida ou aceita, ou que é inconveniente fazê-lo. É desta maneira que nas diversas formas do apostolado da palavra se passa por cima de certas verdades ou se cai na ambigüidade, confiando mais na prudência humana, que não se confunde com a conveniente pedagogia, do que na força e no poder de persuasão da própria verdade. Cai-se igualmente nesta tentação na formação de pessoas, na hora de oferecer um conselho, uma orientação, uma esperança… Em lugar das exigências e da luz do Evangelho, se oferece às pessoas mera experiência humana, conselhos “razoáveis”, privando-as da oportunidade de conhecerem progressivamente a verdade que nos faz livres.
Confiar na força do apostolado supõe para o apóstolo ter a convicção de que a verdade da fé e da moral coincide com a humanização do ser humano e seus grandes ideais. É preciso crer que na verdade está o autêntico bem das pessoas e, portanto, sua única felicidade verdadeira.
5. Pregar problemas e não certezas
Este demônio leva a confundir os distintos níveis e momentos do apostolado da palavra. Há momentos e públicos em que o que se espera é uma conversa ou uma palestra sobre alguma questão em discussão, conjecturas, opiniões e problemas de Igreja. Mas, em se tratando da catequese, da homilia, da pregação missionária, é necessário sempre transmitir a mensagem cristã, que é a mensagem de Cristo, em toda a sua integridade. Neste âmbito, as pessoas esperam receber as certezas da fé para renovar a própria vida. Elas não esperam e nem querem que seus qüestionamentos e perguntas lhes sejam devolvidos sem resposta. Muito menos querem que se repitam relatos de conflitos e de problemas, sem estarem iluminados com as certezas da fé. A essência da evangelização é anunciar uma mensagem e não problemas. Estes podem ser anunciados, mas só como ponto de partida. Trata-se de anunciar certezas e não conjecturas ou opiniões pessoais.
As causas desta tentação podem ser várias: uma poderia ser a falta de critério, de experiência ou de discernimento por parte do apóstolo; outra, a tendência em projetar seu estado interior. Ora, quando se vacila em relação a convicções, quando a vida cristã é mais um conjunto de problemas e de perguntas do que de certezas, a tendência é transmitir isso aos outros. O ditado antigo que diz: “a boca fala do que o coração esta cheio”, se aplica ao apostolado ao pé da letra.
A comunidade cristã se edifica basicamente sobre a fé, a esperança e a caridade de seus membros. Ela não se edifica sobre as dúvidas, as confusões e as problematizações compartilhadas.
6. Reduzir a esperança
Este demônio seculariza o anúncio da esperança cristã. Ora, esta se funda nas promessas de Cristo: a ressurreição depois da morte, a vida eterna, a certeza de seu amor e de sua graça nesta vida que tornam possível o ser humano ser santo em qualquer circunstância, viver com dignidade e ser capaz de superar o mal moral e a tentação em todas as suas formas. Esta é a esperança que essencialmente alimenta o apostolado.
Neste caso, a tentação consiste em transmitir uma mensagem de esperanças humanas em detrimento da esperança cristã fundamental. O apóstolo prega e promove a confiança em relação a um futuro social e político melhor, a superação de uma enfermidade, de um problema humano ou da pobreza, ou promete ainda o êxito das libertações que a humanidade busca nos dias de hoje… Entretanto, ainda que estas esperanças humanas sejam legítimas e se deva lutar por elas, não estão garantidas por Cristo para esta terra. Não sabemos com certeza se elas se realizarão. Anunciá-las como esperança cristã seria enganar as pessoas e reduzir o Evangelho a uma mensagem de libertações humanas legítimas ou de otimismo no porvir, o que não é alheio ao apostolado, mas que não tem a certeza da esperança cristã.
Reduzir a esperança é esvaziar o anúncio da vocação do ser humano à vida eterna, à santidade, à fé e á caridade como o motor e o valor supremo das libertações humanas. É converter o apostolado em inspiração de expectativas humanas e de empenho para um mundo melhor, coisas boas e que desafiam o cristianismo, mas que não deveriam reduzir sua essência, que é a proclamação de Cristo como a verdadeira esperança do ser humano.
7. Perder o sentido das pessoas
Este demônio converte o apóstolo num executivo da pastoral. Alguns cargos e trabalhos se prestam mais a isso, mas em todo caso, o resultado, progressiva e às vezes imperceptivelmente, se dá de maneira semelhante. Isso ocorre quando o apóstolo se vai deixando absorver de tal modo pelo administrativo, o organizativo, o planejamento e a supervisão, que já não tem tempo, e sobretudo espaço psicológico, para dedicar-se às pessoas pelas quais trabalha, para dedicar-lhes o tempo necessário e para estar próximo delas.
O demônio da despersonalização do apostolado faz com que o apóstolo esteja tão dedicado aos meios de ação e de serviço, que esqueçe das pessoas a quem serve e em função das quais estão organizações e programas que tanto o absorvem.
Esta tentação pode tomar outras formas. Por exemplo, o apóstolo que se converte em executivo pastoral, poderá ter a tendência a dar um valor excessivo aos planos, aos programas e às linhas de ação, esquecendo-se da realidade das pessoas que devem levar a cabo tudo isso. Acaba impondo esquemas às pessoas em lugar de adaptar os esquemas e programas à realidade delas. E assim, realidade o apóstolo executivo vão se tornando cada vez mais distante.
O ponto de partida de todo apostolado são as pessoas, com suas possibilidades e seus limites, e não os esquemas, por melhores e mais ideais que sejam.
8. Fazer acepção de pessoas
Deste demônio praticamente ninguém escapa. Não é fácil tomar consciência desta tentação. Ele ataca até o apóstolo mais espiritual, não porque não saiba disso, mas por cegueira. Por isso a expulsão deste demônio implica um longo caminho de iluminação das motivações apostólicas, que como toda iluminação de motivos normalmente se faz durante a vida toda.
Habitualmente nesta tentação do apostolado (salvo que tenha caído em níveis muito baixos), as acepções e discriminações de pessoas não são motivadas por preconceitos graves: racismo, classicismo, nacionalismo, tratamento diferenciado de ricos e pobres, etc. Estes graus de discriminação normalmente não estão presentes na pastoral da Igreja, a não ser em casos extremos. O demônio da acepção de pessoas costuma apresentar-se de maneira mais sutil.
Trata-se aqui de dar mais tempo, interessar-se mais e estar mais disponível às pessoas em geral e para os membros da comunidade cristã que têm mais qualidades humanas, que são mais inteligentes, mais interessantes ou agradáveis, mais simpáticos e atraentes… Conseqüentemente, se deixa de modo sutil num segundo plano, os que são menos dotados, mais opacos e menos atraentes, menos inteligentes e gratificantes… Esta é a forma mais comum de acepção de pessoas no apostolado, tanto mais sutil, profunda e persistente, quanto mais inconsciente ela for.
Além disso, no apostolado, no caso da predileção pelos pobres, ela não pode restringir-se ao nível sociológico, que é sempre essencial, é verdade. Ela precisa chegar igualmente a todos os “pobres” em qualidades humanas externas, psicologicamente discriminados em atenção e acolhida. Ora, o apostolado não pode guiar-se unicamente pelo critério da eficácia, que aconselha investir preferencialmente nos mais dotados e nos líderes potenciais. Deve, igualmente, testemunhar o primado da caridade fraterna, que se revela preferencialmente com os desprezados e esquecidos.
9. 0 sectarismo
O demônio do sectarismo leva o apóstolo a isolar-se em seu campo de trabalho, em suas idéias, em seu grupo… Pouco a pouco, ele vai perdendo seu sentido de pertença e de integração numa Igreja mais ampla, mais rica, numa Igreja universal, na qual todo cristão é solidário em seus êxitos e cruzes, em seus problemas e conquistas, seja em seu país ou no mundo todo. O apóstolo sectário se fecha em sua visão das coisas, nos limites de sua experiência e, través disso, vê e julga a Igreja. Com isso, sua visão deixou de ser verdadeiramente católica.
O sectarismo tem sintomas pessoais e grupais. No nível pessoal, um dos mais típicos, é o isolar-se. O apóstolo trabalha sozinho, sem integrar-se numa missão de conjunto. Não participa das reuniões programadas para esta finalidade, nem de encontros de atualização e de capacitação. Não lhe interessa incorporar-se a critérios e planos comuns, a instâncias de avaliação ou revisão, nem procura relacionar-se com outros evangelizadores.
Conseqüentemente, o sectário isola seu trabalho do resto. Faz “sua coisa” e tem “sua gente”, sua própria experiência e sua visão do apostolado. Tudo o que é diferente de sua visão e experiência é questionável: só vê “poréns” e defeitos. A própria autoridade pastoral da Igreja é ignorada ou criticada quando não concorda com sua visão e idéias próprias .
Outro sintoma desta tentação é reduzir o apostolado a um só tema ou pouco mais, a uma determinada linha de pastoral, como grupos de oração, direitos humanos, liturgia, jovens… O resto não interessa.
Isto não quer dizer que não deva haver evangelizadores especializados. É que o bom especialista precisa ter uma visão mais ampla e de conjunto.
O resultado é que o apóstolo se torna sectário também em relação às pessoas ás quais se dirige. Se ele for monotemático, sua freguesia habitual também o será: falará sempre ao mesmo público, que partilha sua visão e seus interesses limitados. Ora, isso leva ao perigo de suscitar comunidades tão sectárias quanto ele.
O demônio do sectarismo pode ser, portanto, também grupal. Não se trata, porém, do que é normal no apostolado e na Igreja, isto é,  o fato de pessoas mais afins em espiritualidade, em pastoral ou simplesmente por pertencerem a uma mesma geração, formarem grupos de trabalho, de vida cristã ou de amizade. Isto não é sectarismo, ainda que todo grupo afim precise saber que poderia estar exposto a esta tentação. O sectarismo grupal consiste em fechar-se nas idéias do grupo ou do movimento teológico, pastoral, espiritual… Os participantes do grupo acabam pensando que têm a melhor versão da verdade ou toda a verdade, que sua orientação é privilegiada, que não têm muito que receber de outros grupos ou movimentos de Igreja.
Este tipo de sectarismo nos faz marcadamente proselitistas, ignorando o legítimo pluralismo. Não há integração com outros movimentos em tarefas comuns: se costuma ter a própria agenda. Esta tentação pode conduzir, sutilmente, a fazer da própria espiritualidade, da própria pastoral ou de sua teologia, em principio legítimas, uma ideologia, um integrismo conservador, progressista ou de qualquer outra cor.
10. Fechar-se em sua própria experiência
Este demônio não é sectário, nem tem muita gravidade. E uma tentação mais benigna e sutil Basicamente, consiste em elevar as experiências apostólicas pessoais à categoria de princípio universal. Se tal ou tal experiência foi boa, todos os que trabalham neste tipo de apostolado deveriam fazê-la. Se a experiência foi má, ninguém deveria fazê-la. E caso se esteja numa posição de autoridade, se procurará simplesmente suprimi-la.
A tentação está em esquecer que toda experiência é relativa: tem circunstâncias próprias, agentes e evangelizadores próprios, tempo e lugar próprios e irrepetíveis. Assim, o que não deu resultado positivo num certo momento, com determinadas pessoas e num certo conjunto de circunstâncias, não significa que não possa dar resultados com protagonistas e circunstâncias diferentes.
Com o passar dos anos, evidentemente, esta tentação se agrava, dado que o apóstolo já acumulou um número significativo de experiências falidas e frustrantes. A tendência, então, é instalar-se e promover só o que deu resultado a ele próprio, desconfiando de outras experiências e iniciativas.
A verdadeira sabedoria, em contra-partida, consiste em não deixar-se condicionar pelos fracassos, nem pelo acervo positivo das experiências passadas, mas em estar disposto a tentar outras formas de apostolado e a abrir-se à experiências de outros.
11. Esperar do apostolado uma carreira gratificante
Este demônio do apostolado é muito ativo. O apostolado da Igreja é bastante organizado e hierarquizado, como é normal que aconteça em toda instituição humana que tem uma missão a cumprir. Assim, na Igreja, há cargos e tarefas de maior autoridade ou de maior poder ou prestígio que outras. Também existem títulos e honras externas: a Igreja mantém isso com sábio realismo e consideração com a condição humana. A tentação está em ir identificando o apostolado com uma carreira eclesiástica e sua importância e eficácia profunda com o cargo que se ocupa.
O demônio das gratificações terrenas pode tentar de muitas maneiras. A maneira mais rude é quando se une ao apostolado a ganância pelo dinheiro, fazendo dele, não tanto no nível das convicções como na prática, uma profissão lucrativa, seguramente mais generosa e idealista que outras. Algo muito deferente é ganhar a vida com o trabalho apostólico, sem ânsias de lucro, sobretudo quando se está dedicado a ele em tempo integral. Quando esta tentação se agrava, se chega a fazer do apostolado a aparência de um negócio que, embora não seja “negócio” estritamente falando, é suficiente para tirar-lhe a credibilidade. Esta tendência pode levar o apóstolo a interessar-se exclusivamente pelas tarefas apostólicas remuneradas, perdendo, com isso, o sentido da gratuidade no serviço e na evangelização.
Uma outra tentação mais sutil deste demônio, é esperar reconhecimento e até elogios das pessoas e da hierarquia da Igreja. Quem cai nesta tentação, passa a necessitar deste tipo de gratificação para manter seu entusiasmo e seu élan. Pareceria que no apostolado não se devesse buscar agradar a Deus, mas recompensas humanas. Quando não há elogios e reconhecimentos explícitos, se interpreta isso como uma ingratidão e uma falta de valorização, provocando uma baixa na própria motivação e entrega. De modo semelhante, quando há críticas por parte das pessoas com quem trabalha ou da hierarquia da Igreja, o apóstolo se sente rechaçado e perseguido. Mais uma gota d’água, e o apóstolo deixará o seu trabalho.
Entretanto, talvez o demônio mais sutil se dá na aspiração de postos e cargos; na necessidade de que toda mudança de apostolado signifique igualmente uma promoção. Há uma expectativa latente por “ascender”. O apóstolo marcado por esta tentação, se não ascende em tempo, fica ressentido e, às vezes, se “desestrutura”. Trata-se de um demônio sutil, que costuma fantasiar-se de “anjo da luz” (2 Cor 11,14): dissimula a ambição de promoções e postos com a desculpa do apostolado mais eficaz, de serviço à Igreja, etc… Na prática, se faz da “carreira” um fator de apostolado, e da ascensão um referencial constante, em geral não totalmente consciente. O resultado desta tentação é a imperfeição das motivações: lhe interessa não só servir à Igreja gratuitamente e seguir a Cristo pobre, mas ficar bem com todos e “ganhar pontos”. Esta tentação produz também uma falta de liberdade no apostolado e uma preocupação pela própria imagem. Evita-se toda discordância ou oposição legitima com a autoridade, que em certos momentos pode ser um dever no apostolado, não tanto por lealdade, mas pelo interesse de mostrar-se agradável e dialogante.
12. Perder o gosto pelo apostolado
Este demônio transforma a evangelização em rotina e num dever, quando deveria ser a principal fonte de alegria para a apóstolo. A alegria e a plenitude interior de colaborar com a vinda do Reino de Deus e de trabalhar na vinha do Senhor devem ser para o apóstolo uma experiência constante.
Esta tentação está ilustrada precisamente na parábola dos operários contratados para a vinha, em que alguns chegam cedo e outros mais tarde (Mt 20,lss). Os que haviam trabalhado o dia inteiro, se queixam de que seu salário é igual ao daqueles que haviam trabalhado só uma hora. Ora, o que eles não tinham compreendido, é que o salário não era importante, nem era a verdadeira gratificação pelo seu trabalho. Seu prêmio e gratificação era o próprio fato de terem dedicado o dia inteiro à vinha do Senhor, com a satisfação e a alegria que isso lhes poderia ter ocasionado.
O apóstolo que sucumbe a esta tentação, fará de seu apostolado um trabalho a mais, como outros, limitado pelo peso do dever e da rotina. Como os operários que trabalharam o dia todo, trabalhará bem e com dedicação, mas perderá de vista o sentido último do que ele faz: um trabalho para a eternidade, pelo qual Deus age nele, para libertar a condição humana e semear vida de fé, de esperança e de amor a Deus e aos outros, que é o Reino de Deus que se antecipa.
É no apostolado que o apóstolo encontra sua alegria e o sentido de sua vida. É parte de sua alegria comprovar o bem que Deus faz através dele, e dar graças a Deus, sem vanglória, porque Cristo o elegeu como seu instrumento livre e responsável, para “dar fruto que permaneça” (Jo 15,16). O que não dispensa o apóstolo de, sem perder a paz e sua entrega alegre, também pedir perdão com humildade, pois devido às suas falhas pessoais e falta de santidade, Deus não pôde fazer através dele todo o bem que ele queria. Pedir perdão porque, por ele não ter sido melhor, muitos não se tornaram melhores, nem se converteram e nem recuperaram a esperança.
O gosto e a gratuidade por trabalhar na vinha do Senhor não deve fazer-nos complacentes. Há muito o que mudar e do que nos arrepender no apostolado. Por nossa falta de santidade, seus frutos, reais pela graça de Deus, são, às vezes, medíocres.
13. A instalação
O demônio da instalação, às vezes com boas desculpas, corrói no apóstolo o espírito de superação em todos os aspectos. É uma tentação que costuma chegar, ainda que nem sempre, com o passar dos anos e a chegada da maturidade. Ela se expressa no fato do apóstolo ter encontrado seu cantinho, seu ritmo e seu modo de trabalhar, e de se ter arraigado em seus critérios e idéias. Ele é consciente de que o apostolado da Igreja avançou, que ele apresenta novos desafios e exigências, mas não tem disposição para mudar e renovar-se. Aos mais jovens que trabalham junto dele, os deixa fazer, mas não se deixa questionar. Pode até participar de reuniões e cursos de renovação, mas estes não têm influência sobre ele. Tudo o que ele espera é o que o deixem em paz, instalado em sua pastoral que, além do mais, costuma realizar de forma irrepreensível. Apesar disso, é possível até que ocupe altos cargos na Igreja.
Esta tentação, que vai tomando conta lentamente e se faz inevitável quando o apóstolo perde a espiritualidade do trabalho, costuma ir combinada com a instalação em seus próprios defeitos. Provavelmente nem se trate de algo realmente grave, mas o dinamismo espiritual está estancado. Sob uma aparência exterior honesta, há uma mediocridade interior. Desanimado, já não tem suficiente esperança e nem confiança em Deus para melhorar e, tacitamente, já fez um pacto com seus defeitos e mediocridade que ele pensa, falsamente, que não pode ou não vale a pena superar. “Eu sou assim mesmo…”.
Este demônio induz a pensar, sobretudo depois de certa idade, que se tem o direito de buscar compensações e de aburguesar-se. E, então, o apóstolo termina contentando-se com as exigências mínimas.
14.Carecer de fortaleza ou vigor
Este demônio debilita o apóstolo em algo que é fundamental para exercer um apostolado de envergadura, abnegado e constante, apesar de toda sorte de contradições: a fortaleza.
Este debilitamento e carência adquire formas contrárias às que caracterizam a fortaleza apostólica. Afeta, em primeiro lugar, o vigor físico, que não pode ser o mais relativo no apostolado. Não se pode, por exemplo, menosprezar a saúde das pessoas. Afeta, também, os hábitos alimentares: a gente pode tornar-se exigente em qualidade e quantidade; no horário; apega-se a certos hábitos; chegando à incapacidade de dar um sentido evangélico ao comer pouco ou nada, caso o serviço pastoral o requeira. O mesmo ocorre com o sono e o descanso, que muitas vezes o serviço pede sacrificar. Converte-se numa dificuldade habitual viajar em meios populares, a pé, em transporte coletivo. Se busca sistematicamente o meio mais rápido e cômodo, com a desculpa da eficácia apostólica, sem discernimento, uma vez que, em muitos casos, a escusa pode ser válida. Também o cuidado excessivo da saúde e a adoção de todas as formas de prevenção às quais recorrem os mais privilegiados, pode tornar mais aguda esta fase de austeridade e fortaleza. Poderia-se agregar outros exemplos.
A tentação afeta igualmente a fortaleza psicológica, tanto mais necessária que a física para o verdadeiro apostolado. Neste campo, é preciso educar-se num alto grau de resistência psicológica, o que não exclui ser emocionalmente vulnerável como todo ser humano normal. A fortaleza consiste em assimilar os golpes psicológicos, sem desanimar e, muito menos, desestruturar-se. Esta deve ser a atitude diante das críticas injustas ou parciais, diante das calúnias, das acusações… E, logicamente, diante das perseguições e das diversas formas de sofrimento, que podem chegar ao martírio, por causa do Reino. A aspiração de muitos apóstolos à última bem-aventurança – “bem-aventurados os perseguidos por minha causa e a justiça do Reino” -, não se improvisa, e é vã se não for preparada e se não estiver acompanhada pela aceitação das provações e crises psicológicas, com fortaleza evangélica.
A tentação pode ser mais grave se a provação da fortaleza provém do interior da Igreja. Um dos piores sofrimentos do apóstolo é o da “contradição dos bons”, de sua comunidade, de seus irmãos e companheiros de trabalho, de autoridades da Igreja. Em certos momentos do apostolado, em muitas ocasiões em que se trata de experimentar ou inovar dentro daquilo que é legítimo, o apóstolo precisa aceitar, com coração sadio e atitude evangélica, ser minoria ou simplesmente estar sozinho. Por isso, necessitará fortaleza diante das tensões e conflitos existentes no interior da Igreja, diante das incompreensões, das suspeitas, da falta de confiança e de colaboração.
A fortaleza apostólica purifica, amadurece e prepara para o futuro. O demônio da inércia e da fragilidade mantém o apóstolo na adolescência, numa certa mediocridade rotineira, dificultando-lhe exercer o melhor serviço da Igreja, agora e no futuro.
15. A inveja pastoral
O demônio da inveja não é alheio ao apostolado. Trata-se de um demônio universal. Obviamente, sua ação entre os apóstolos não tem os resultados devastadores que tem na política, na arte ou em outras atividades do “mundo”: as invejas no interior da Igreja são muito menos graves, mas se apresentam de uma forma sutil.
A tentação se expressa habitualmente em forma oblíqua. Manifesta-se com a tendência em encontrar e assinalar, à primeira vista, defeitos em todas as iniciativas pastorais e em atividades apostólicas que se destacam e se sobressaem do comum. Se despreza toda forma de apostolado que tem algo de diferente, com comentários, piadas, etc. Também no corpo apostólico da Igreja se sofre a tentação do corpo social: defender a mediocridade e derrubar tudo o que se sobressai e que, por isso, questiona. A tentação se manifesta também mediante o cinismo diante de trabalhos, iniciativas ou apóstolos que querem viver radicalmente seu chamado à evangelização. O cinismo é a expressão mais sutil da inveja; é seu melhor disssolvente.
Agora, em alguns casos, o demônio da inveja apostólica se revela em forma direta, em formas de rivalidade e de competição latente ou aparente. Esta tentação atua em todos os meios e níveis, normalmente dissimulada pelo “zelo pela verdade”, pelo “serviço do Reino” etc., palavras que escondem, às vezes, inveja pela reputação ou pelo êxito de um companheiro de apostolado.
Este demônio age também entre os teólogos, campo em que nem todo conflito ou disputa teológica está inspirada na busca da verdade; costuma haver questões pessoais misturadas. Age nos meios pastorais, em todos os níveis. Quantas vezes, apóstolos valiosos, projetos e experiências prometedoras são marginalizados, postergadas sem motivo, ou ignoradas, por questões de rivalidade!
O demônio da inveja pastoral leva a considerar projetos ou atividades de outros, como uma ameaça à própria influência apostólica. Quando se cai nesta tentação, o relacionamento apostólico fica inevitavelmente comprometido.
16. Perder o sentido do humor
Este demônio dramatiza e faz vítimas. Neste caso, o sentido do humor consiste em ver o lado bom das coisas, ainda que aparentemente de todo negativas; consiste em aprender a relativisar, a olhar “desde fora” as situações que nos afetam. O sentido do humor, por isso, ajuda a equilibrar as coisas, a não dramatizar e não ver tudo de maneira trágica. Ter sentido de humor é não fazer-se de importante, não levar a sério títulos, nem os problemas, nem os conflitos pastorais e eclesiais. É rir sadiamente da gente mesmo, das situações e de seus protagonistas.
O demônio que arranca ou adormece o sentido do humor, arrasta progressivamente o apóstolo à crítica sistemática, ao azedume, ao complexo de vítima que dramatiza tudo o que o afeta desfavoravelmente. O apóstolo que se dá muita importância, que acha seu trabalho o máximo, que busca cargos importantes ou que simplesmente se leva muito a sério, perde a simplicidade evangélica e, com ela, o sentido cristão do humor.
O apostolado requer o sentido do humor. A Igreja também precisa de humor e, obviamente, todos nós. O sentido do humor é uma qualidade tão humana quanto cristã. Trata­-se de uma qualidade presente nos santos, nos apóstolos e nos missionários mais atraentes. Teve importância no apostolado de ontem e tem no de agora.
De fato, em tempos de particular tensão e conflito na vida apostólica e da Igreja em geral, o sentido do humor se torna imprescindível. Por isso, contribuir com seu desaparecimento da vida eclesial e pastoral constitui uma tentação permanente, um demônio. Os cismas, heresias, dissidências, divisões, conflitos insolúveis e falta de diálogo e de comunhão são atitudes de pessoas que normalmente perderam o sentido do humor; que dão grande importância a si mesmos e às suas idéias. Sem sentido de humor, qualquer contradição, reprovação ou questionamento provindos da Igreja, é um drama, uma perseguição. Portanto, um apóstolo sem sentido de humor é um apóstolo vulnerável e débil.
Em última análise, o sentido do humor forma parte da fortaleza cristã e, certamente, a propicia.
Este texto é um extrato do livro do teólogo chileno Segundo GALILEA, Tentación y Discernimiento, Narcea, Madrid 1991, p. 29-67.


O QUE DEVEMOS FAZER PARA ALCANÇAR A SANTIDADE? Pe.Paulo Ricardo




Santo Agostinho: "Creio na Igreja una e santa"

Texto integral da segunda pregação de Quaresma do Pe. Raniero Cantalamessa, OFM Cap

1. Do Oriente ao Ocidente
Na meditação introdutória, da semana passada, refletimos sobre o significado da Quaresma como um tempo para irmos com Jesus até o deserto, em jejum de alimentos, palavras e imagens, para aprender a superar as tentações e, sobretudo, crescer na intimidade com Deus.
Nas quatro pregações que restam, dando continuidade à reflexão iniciada na Quaresma de 2012 com os Padres gregos, frequentaremos agora a escola dos quatro grandes doutores da Igreja latina: Agostinho, Ambrósio, Leão Magno e Gregório Magno; para ver o que cada um nos diz, hoje, sobre a verdade da fé que mais particularmente defendeu: respectivamente, a natureza da Igreja, a presença real de Cristo na Eucaristia, o dogma cristológico de Calcedônia e a inteligência espiritual das Escrituras.
O objetivo é redescobrir, por trás desses grandes Padres, a riqueza, a beleza e a felicidade de crer; passar, como diz São Paulo, "de fé em fé" (Rm 1,17), de uma fé acreditada para uma fé vivida. Teremos, assim, um aumento do "volume" de fé dentro da Igreja para constituir depois a força maior do seu anúncio ao mundo.
O título do ciclo vem de um pensamento caro aos teólogos medievais: “Nós”, dizia Bernardo de Chartres, “somos como anões sentados em ombros de gigantes, de modo a vermos mais coisas e mais longe do que eles, não pela agudeza do nosso olhar nem pela altura do nosso corpo, mas porque somos carregados para o alto e elevados por eles a uma altura gigantesca" (1). Este pensamento encontrou expressão artística em certas estátuas e vitrais de catedrais góticas da Idade Média, em que são representados personagens de estatura imponente, que carregam, sentados sobre seus ombros, homens pequenos, quase anões. Os gigantes eram para eles, como são para nós, os Padres da Igreja.
Depois das lições de Atanásio, Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa, respectivamente sobre a divindade de Cristo, sobre o Espírito Santo, sobre a Trindade e sobre o conhecimento de Deus, podia-se ter a impressão de que restasse muito pouco a ser feito pelos Padres latinos na edificação do dogma cristão. Um olhar superficial para a história da teologia nos convence imediatamente do contrário.
Motivados pela cultura a que pertenciam, favorecidos pela sua forte têmpera especulativa e condicionados pelas heresias que eram forçados a combater (arianismo, apolinarismo, nestorianismo, monofisismo), os Padres gregos tinham se concentrado principalmente nos aspectos ontológicos do dogma: a divindade de Cristo, as suas duas naturezas e o modo da sua união, a unidade e a trindade de Deus. Os temas mais caros a Paulo, a justificação, a relação entre lei e evangelho, a Igreja como corpo de Cristo, foram deixados à margem da sua atenção ou tratados en passant. Aos seus escopos respondia muito melhor João, com a sua ênfase na encarnação, do que Paulo, que põe no centro de tudo o mistério pascal, isto é, o agir, mais do que o ser de Cristo.
A índole dos latinos, mais inclinada, excetuando-se Agostinho, a se ocupar de problemas específicos, jurídicos e organizacionais, do que de questões especulativas, unida ao surgimento de novas heresias, como o donatismo e o pelagianismo, estimulará uma reflexão nova e original sobre os temas paulinos da graça, da Igreja, dos sacramentos e das Escrituras. São os tempos sobre os quais queremos refletir nesta pregação quaresmal.
2. O que é a Igreja?
Comecemos a nossa resenha pelo maior dos padres latinos, Agostinho. O doutor de Hipona deixou a sua marca em quase todas as áreas da teologia, mas especialmente em duas: a da graça e a da Igreja; a primeira, fruto da sua luta contra o pelagianismo; a segunda, de sua luta contra o donatismo.
O interesse pela doutrina de Santo Agostinho sobre a graça prevaleceu, do século XVI em diante, tanto no âmbito protestante (ao qual estão ligados Lutero, com a doutrina da justificação, e Calvino, com a da predestinação), quanto no campo católico, por causa das controvérsias levantadas por Jansen e Baio (2). Já o interesse pelas suas doutrinas eclesiais prevalece em nossos dias, porque o Concílio Vaticano II fez da Igreja o seu tema central e porque o movimento ecumênico tem na ideia de Igreja a questão crucial a ser resolvida. Procurando ajuda e inspiração nos Padres da Fé para o hoje da fé, vamos nos ocupar desta segunda área de interesse de Santo Agostinho, que é a Igreja.
A Igreja não era um assunto desconhecido para os Padres gregos nem para os escritores latinos anteriores a Agostinho (Cipriano, Hilário, Ambrósio), mas as suas afirmações se limitavam principalmente a repetir e comentar afirmações e imagens das Escrituras. A Igreja é o novo povo de Deus; a ela é prometida a indefectibilidade; ela é "a coluna e a base da verdade"; o Espírito Santo é o seu mestre supremo; a Igreja é "católica" porque se estende a todos os povos, ensina todos os dogmas e possui todos os carismas; na esteira de Paulo, fala-se da Igreja como do mistério da nossa incorporação a Cristo por meio do batismo e do dom do Espírito Santo; ela nasceu do lado aberto de Cristo na cruz, como Eva do lado de Adão adormecido (3).
Tudo isso, porém, era dito ocasionalmente; a Igreja ainda não tinha entrado em discussão. Quem será forçado a tratar dela é justamente Agostinho, que, durante quase toda a vida, teve de lutar contra o cisma dos donatistas. Talvez ninguém se lembrasse hoje daquela seita norte-africana se ela não tivesse sido a ocasião de origem do que hoje chamamos de eclesiologia, ou seja, um discurso refletido sobre o que é a Igreja no desígnio de Deus, a sua natureza e o seu funcionamento.
Por volta de 311, um certo Donato, bispo da Numídia, se recusou a receber novamente na comunhão eclesial aqueles que durante a perseguição de Diocleciano tinham entregado os livros sagrados às autoridades estatais, renegando a fé para salvar a vida. Em 311, foi eleito bispo de Cartago um certo Ceciliano, acusado, erradamente segundo os católicos, de ter traído a fé durante a perseguição de Diocleciano. Opôs-se a esta nomeação um grupo de setenta bispos do norte africano, liderados por Donato. Eles depuseram Ceciliano e elegeram em seu lugar Donato. Excomungado pelo papa Milcíades em 313, ele permaneceu no seu posto, provocando um cisma que criou no norte da África uma Igreja paralela à católica, mantida até a invasão dos vândalos, um século depois.
Durante a polêmica, eles tentaram justificar a sua posição com argumentos teológicos. Foi para refutá-los que Agostinho desenvolveu, pouco a pouco, a sua doutrina da Igreja. Isto aconteceu em dois contextos diferentes: nas obras escritas diretamente contra os donatistas e nos seus comentários à Escritura e discursos ao povo. É importante distinguir entre esses dois contextos porque, conforme cada um, Agostinho insistirá mais em alguns aspectos da Igreja do que em outros e só a partir do conjunto é que pode ser entendida a sua doutrina completa. Vamos ver, portanto, brevemente, quais são as conclusões a que o santo chega em cada um dos dois contextos, a começar pelo diretamente antidonatista.
a. A Igreja, comunhão dos sacramentos e sociedade dos santos. O cisma donatista partiu de uma convicção: não pode transmitir a graça um ministro que não a possui; os sacramentos administrados desta forma seriam desprovidos de qualquer efeito. Este argumento, que no início foi aplicado à ordenação do bispo Ceciliano, acabou estendido rapidamente aos outros sacramentos, em particular ao batismo. Com isto, os donatistas justificavam a sua separação dos católicos e a prática de rebatizar quem vinha das suas fileiras.
Em resposta, Agostinho desenvolve um princípio que se tornará uma conquista perene da teologia e que lança as bases de um futuro tratado de sacramentis: a distinção entre potestas e ministerium, ou seja, entre a causa da graça e o seu ministro. A graça conferida pelos sacramentos é obra exclusiva de Deus e de Cristo; o ministro não passa de um instrumento: "Pedro batiza, é Cristo quem batiza; João batiza, é Cristo quem batiza; Judas batiza, é Cristo quem batiza". A validade e eficácia dos sacramentos não é impedida pelo ministro indigno: uma verdade da qual, bem sabemos, o povo cristão precisa se lembrar também hoje...
Neutralizada, assim, a principal arma do adversário, Agostinho pode elaborar a sua grandiosa visão da Igreja mediante algumas distinções fundamentais. A primeira é entre a Igreja presente ou terrestre e a Igreja celestial ou futura. Só esta segunda será uma Igreja de todos santos e apenas santos; a Igreja do tempo presente será sempre o campo em que se misturam o trigo e o joio, a rede que recolhe peixes bons e peixes ruins, ou seja, santos e pecadores.
Dentro da Igreja em seu estágio terreno, Agostinho opera outra distinção: entre a comunhão dos sacramentos (communio sacramentorum) e a sociedade dos santos (societas sanctorum). A primeira une visivelmente entre si todos aqueles que participam dos mesmos sinais externos: os sacramentos, a Escritura, a autoridade; a segunda une entre si todos e apenas aqueles que, além dos sinais, também têm em comum a realidade escondida nos sinais (res sacramentorum), que é o Espírito Santo, a graça, a caridade.
Dado que na terra sempre será impossível saber com certeza quem possui o Espírito Santo e a graça, e, mais ainda, se eles perseverarão nesse estado até o fim, Agostinho acaba identificando a verdadeira e definitiva comunidade dos santos com a Igreja celeste dos predestinados. "Quantas ovelhas que hoje estão dentro estarão fora, e quantos lobos que hoje estão fora estarão dentro!" (5).
A novidade, neste ponto, mesmo no tocante a Cipriano, é que, enquanto este fazia consistir a unidade da Igreja em algo externo e visível, na concórdia de todos os bispos entre si, Agostinho a faz consistir em algo interno: o Espírito Santo. A unidade da Igreja é operada, assim, pelo mesmo que opera a unidade na Trindade: “O Pai e o Filho quiseram que estivéssemos unidos entre nós e com eles por meio do mesmo vínculo que os une, o amor, que é o Espírito Santo” (6). Ele executa na Igreja a mesma função que exerce a alma em nosso corpo natural: ser o seu princípio vital e unificador. "O que a alma é para o corpo humano, o Espírito Santo é para o Corpo de Cristo, que é a Igreja" (7).
A plena pertença à Igreja exige as duas coisas juntas, a comunhão visível dos sinais sacramentais e a comunhão invisível da graça. Esta, no entanto, admite graus, e por isso não quer dizer que se deva estar necessariamente dentro ou fora. Pode-se estar em parte dentro e em parte fora. Há uma pertença exterior, ou sinais sacramentais, em que se situam os cismáticos donatistas e os próprios maus católicos, e uma comunhão plena e total. A primeira consiste em ter o sinal externo da graça (sacramentum), sem receber, porém, a realidade interior produzida por eles (res sacramenti), ou em recebê-la, mas para a própria condenação, não para a própria salvação, como no caso do batismo administrado pelos cismáticos ou da Eucaristia recebida indignamente pelos católicos.
b. A Igreja Corpo de Cristo animado pelo Espírito Santo. Nos escritos exegéticos e nos discursos ao povo, encontramos esses mesmos princípios básicos da eclesiologia; mas menos pressionado pela controvérsia e falando, por assim dizer, em família, Agostinho pode insistir mais em aspectos interiores e espirituais da Igreja, mais caros a ele. Neles, a Igreja é apresentada, com tons muitas vezes elevados e comovidos, como o corpo de Cristo (ainda falta o adjetivo “místico”, que será adicionado mais tarde), animado pelo Espírito Santo, tão afim ao corpo eucarístico a ponto de, às vezes, igualar-se quase totalmente a ele. Ouçamos o que ouviram os seus fiéis, numa festa de Pentecostes, sobre esta questão:
"Se queres entender o corpo de Cristo, ouve o Apóstolo que diz aos fiéis: Vós sois o corpo de Cristo e os seus membros (1 Co 12,27). Se vós sois o corpo e os membros de Cristo, na mesa do Senhor está o vosso mistério: recebei o vosso mistério. Ao que sois, respondeis ‘amém’ e, ao respondê-lo, o confirmais. É dito a vós: ‘o corpo de Cristo’, e respondeis: ‘amém’. Sê membro do corpo de Cristo, para o teu amém ser verdadeiro... Sede o que vedes e recebei o que sois" (8).
O nexo entre os dois corpos de Cristo se fundamenta, para Agostinho, na singular correspondência simbólica entre o devir de um e o formar-se da outra. O pão da Eucaristia é obtido da massa de muitos grãos de trigo e o vinho de uma multidão de bagos de uva: assim a Igreja é formada por muitas pessoas, reunidas e amalgamadas pela caridade que é o Espírito Santo (9). Como o trigo espalhado pelas colinas foi primeiro colhido, depois moído, misturado com água e assado no forno, assim os fiéis esparsos pelo mundo foram reunidos pela palavra de Deus, moídos pelas penitências e exorcismos que precedem o batismo, imersos na água do batismo e passados pelo fogo do Espírito. Mesmo em relação à Igreja, deve-se dizer que o sacramento "significando causat": significando a união de várias pessoas em uma, a Eucaristia a realiza, a causa. Neste sentido, podemos dizer que "a Eucaristia faz a Igreja".
3. Atualidade da eclesiologia de Agostinho
Vamos agora ver como as ideias de Agostinho sobre a Igreja podem ajudar a iluminar os problemas que ela enfrenta em nosso tempo. Quero me concentrar em especial na importância da eclesiologia de Agostinho para o diálogo ecumênico. Uma circunstância torna esta escolha particularmente oportuna. O mundo cristão se prepara para celebrar o quinto centenário da Reforma Protestante. Já começaram a circular declarações e documentos conjuntos em vista do evento (10). É vital, para toda a Igreja, não estragarmos esta ocasião permanecendo prisioneiros do passado, tentando apurar, talvez com maior objetividade e serenidade, as razões e as culpas de um e de outro, mas sim darmos um salto de qualidade, como ocorre na eclusa de um rio ou de um canal, que permite que os navios continuem a sua navegação num patamar mais elevado.
A situação do mundo, da Igreja e da teologia mudou desde aquela época. Trata-se de recomeçar a partir da pessoa de Jesus, de ajudar humildemente os nossos contemporâneos a descobrir a pessoa de Cristo. Devemos nos remeter ao tempo dos apóstolos. Eles tinham diante de si um mundo pré-cristão; nós temos diante de nós um mundo em grande parte pós-cristão. Quando Paulo quis resumir em uma frase a essência da mensagem cristã, ele não disse "Anunciamos esta ou aquela doutrina", mas "Nós proclamamos Cristo, e Cristo crucificado" (1 Cor 1, 23). E ainda: "Nós proclamamos Jesus Cristo, o Senhor" (2 Cor 4,5).
Isto não significa ignorar o grande enriquecimento teológico e espiritual produzido pela Reforma, nem querer retornar ao ponto de antes; significa, em vez disso, deixar que toda a cristandade se beneficie das suas conquistas, uma vez libertadas de certas forçações devidas ao clima polêmico do momento e às posteriores controvérsias. A justificação gratuita pela fé, por exemplo, deveria ser anunciada hoje, e com mais força do que nunca, mas não em oposição às boas obras, o que é uma questão superada, e sim em oposição à pretensão do homem moderno de se salvar sozinho, sem necessidade nem de Deus nem de Cristo. Se vivesse hoje, sou convencido que isto seria o modo com o qual Lutero predicasse a justificação por fé. 
Vamos ver como a teologia de Agostinho pode nos ajudar neste esforço para superar as barreiras seculares. O caminho a percorrer hoje, em certo sentido, segue na direção oposta à que foi tomada por ele contra os donatistas. Na época, era preciso ir da comunhão dos sacramentos à comunhão na graça do Espírito Santo e na caridade, mas hoje temos que ir da comunhão espiritual da caridade à plena comunhão, inclusive nos sacramentos, entre os quais, em primeiro lugar, a Eucaristia.
A distinção entre os dois níveis de realização da verdadeira Igreja, o externo, dos sinais, e o interno, da graça, permite que Agostinho formule um princípio que seria impensável antes dele: "Pode haver algo na Igreja católica que não seja católico, e fora da Igreja católica algo católico" (11). Os dois aspectos da Igreja, o visível e institucional e o invisível e espiritual, não podem ser separados. Isso é verdade e foi reiterado por Pio XII na Mystici corporis e pelo Concílio Vaticano II na Lumen Gentium, mas, devido às separações históricas e ao pecado humano, até que se realize a sua correspondência plena, não podemos dar mais importância à comunidade institucional do que à espiritual.
Para mim, isto levanta uma séria indagação. Posso eu, como católico, me sentir mais em comunhão com a multidão dos que, tendo sido batizados na minha própria Igreja, se desinteressam completamente de Cristo e da Igreja, ou se interessam por ela apenas para falar mal, do que me sinto em comunhão com as fileiras daqueles que, apesar de pertencer a outras confissões cristãs, acreditam nas mesmas verdades fundamentais em que eu creio, amam Jesus Cristo até dar a vida por ele, difundem o Evangelho, se esforçam para aliviar a pobreza no mundo e possuem os mesmos dons do Espírito Santo que nós? As perseguições, tão frequentes hoje em certas partes do mundo, não fazem distinção: os perseguidores não queimam igrejas nem matam pessoas porque elas são católicas ou protestantes, mas porque são cristãs. Para eles, nós já somos "uma coisa só"!
Esta, obviamente, é uma pergunta que deveria ser feita também pelos cristãos das outras igrejas a propósito dos católicos, e, graças a Deus, é precisamente isto o que está acontecendo de uma forma oculta, porém maior do que as notícias nos deixam vislumbrar. Um dia, tenho certeza, ficaremos admirados, ou outros ficarão, por não termos notado antes o que o Espírito Santo estava realizando entre os cristãos do nosso tempo, à margem da oficialidade. Fora da Igreja católica há muitíssimos cristãos que olham para ela com olhos novos e começam a reconhecer nela as suas próprias raízes.
A intuição mais nova e fecunda de Agostinho sobre a Igreja, como vimos, foi a de identificar o princípio essencial da sua unidade no Espírito, mais do que na comunhão horizontal dos bispos uns com os outros e dos bispos com o papa de Roma. Como a unidade do corpo humano é dada pela alma que vivifica e move todos os seus membros, assim é a unidade do corpo de Cristo. Esta unidade é um fato místico, mais do que uma realidade que se expressa social e visivelmente em perspectiva externa. É o reflexo da unidade perfeita que existe entre o Pai e o Filho por obra do Espírito. Foi Jesus quem fixou de uma vez para sempre este fundamento místico da unidade quando disse: "Que todos sejam um, como nós somos um" (Jo 17, 22). A unidade essencial na doutrina e na disciplina será o fruto desta unidade mística e espiritual, nunca a sua causa.
Os passos mais concretos para a unidade não são dados, portanto, em torno de uma mesa ou nas declarações conjuntas (embora tudo isto seja importante); são dados quando os crentes de diferentes confissões proclamam juntos, em acordo fraterno, o Senhor Jesus, compartilhando cada um o próprio carisma e reconhecendo-se irmãos em Cristo.
4. Membros do corpo de Cristo, movidos pelo Espírito!
Em seus discursos ao povo, Agostinho nunca expõe as suas ideias sobre a Igreja sem apresentar imediatamente as consequências práticas para a vida cotidiana dos fiéis. E é isto o que nós também queremos fazer antes de concluir a nossa meditação, como se nos colocássemos entre as fileiras dos seus ouvintes de então.
A imagem da Igreja como Corpo de Cristo não é uma novidade de Agostinho. O que é novo nele são as conclusões práticas para a vida dos crentes. Uma delas é que não temos mais razão para nos olharmos com inveja e com ciúme. O que eu não tenho, mas os outros têm, também é meu. Ouvimos o apóstolo elencar todos aqueles maravilhosos carismas: apostolado, profecia, curas... e talvez nos entristeçamos pensando que não temos nenhum deles. Mas, cuidado, alerta Agostinho: "Se tu amas, o que tens não é pouco. Se de fato amas a unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é também possuído por ti! Expulsa a inveja e será teu o que é meu, e, se eu expulsar a inveja, será meu o que tu possuis".
Somente o olho, no corpo, tem a capacidade de ver. Mas o olho, por acaso, enxerga apenas para si? Não é todo o corpo que se beneficia da sua capacidade de ver? Só a mão age, mas ela age, acaso, apenas para si mesma? Se uma pedra está prestes a atingir o olho, a mão por acaso permanece imóvel, dizendo que o golpe, afinal, não é contra ela? O mesmo acontece no corpo de Cristo: o que cada membro é e faz, Ele é e faz para todos!
Eis por que a caridade é o "caminho mais excelente" (1 Cor 12 , 31): ela me faz amar a igreja, ou a comunidade em que vivo, e, na unidade, todos os carismas, e não apenas alguns, são meus. E há mais: se amas a unidade mais do que eu a amo, o carisma que eu possuo é mais teu do que meu. Suponhamos que eu tenha o carisma de evangelizar; eu posso me comprazer ou me vangloriar dele, e, assim, me torno "um címbalo que retine" (1 Cor 13,01); o meu carisma "de nada me aproveita", ao passo que o ouvinte não deixa de se beneficiar, apesar do meu pecado. A caridade multiplica realmente os dons; ela faz do carisma de um, o carisma de todos.
“Fazes parte do corpo de Cristo? Amas a unidade da Igreja?”, perguntava Agostinho aos seus fiéis. “Então, quando um pagão te perguntar por que não falas todas as línguas, se está escrito que aqueles que receberam o Espírito Santo falam todas as línguas, responde sem hesitar: ‘É claro que falo todas as línguas! Eu pertenço ao corpo da Igreja, que fala todas as línguas e em todas as línguas proclama as grandes obras de Deus’” (13).
Quando formos capazes de aplicar esta verdade não só às relações dentro da comunidade em que vivemos e à nossa Igreja, mas também às relações entre uma Igreja cristã e a outra, naquele dia a unidade dos cristãos será praticamente um fato consumado.
Acolhamos a exortação com que Agostinho fecha muitos dos seus discursos sobre a Igreja: “Se quiserdes, pois, experimentar o Espírito Santo, mantenha o amor, amai a verdade e alcançareis a eternidade. Amém” (14).
[Tradução do original italiano por ZENIT português]
(1) Bernardo de Chartres, coment. João de Salisbury, Metalogicon, III, 4 (Corpus Chr. Cont. Med., 98, p.116).
(2) A este âmbito da influência de Agostinho é dedicado o livro de H. de Lubac, Augustinisme et théologie moderne, Paris, Aubier 1965.
(3) Cf.  J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, London 1968 chap. XV.
(4) Agostinho, Contra Epist. Parmeniani II,15,34; cf. todo o Sermo 266.
(5) Agostinho, In Ioh. Evang. 45,12:  “Quam multae oves foris, quam multi lupi intus!”.
(6) Agostinho, Discursos, 71, 12, 18 (PL 38,454).
(7) Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231).
(8) Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 em diante).
(9) Ibidem.
(10) Cf. documento conjunto católico-luterano “Do conflito à comunhão”, http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/lutheran-fed-docs/rc_pc_chrstuni_doc_2013_dal-conflitto-alla-comunione_it.html (em italiano).
(11) Agostinho, De Baptismo, VII, 39, 77.
(12) Agostinho, Tratados sobre João, 32,8.
(13) Cf. Agostinho, Discursos, 269, 1.2 (PL 38, 1235 s.).
(14) Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231).

"É possíver ter Jesus como amigo porque, tendo ressuscitado, ele está vivo, está ao meu lado

Na quarta pregação da Quaresma Pe. Cantalamessa fala do dogma cristológico e do desejo de Jesus de ser nosso amigo

Roma,  (Zenit.orgLaura Guadalupe | 281 visitas

Existem várias vias de acesso ao mistério de Cristo. Padre Raniero Cantalamessa, na sua quarta pregação de Quaresma, continua o caminho traçado da Tradição da Igreja: o “dogma cristológico”, compreendido como “as verdades fundamentais sobre Cristo, definidos nos primeiros concílios ecumênicos, especialmente no de Calcedônia”. Em definitiva tais verdades, continua o Capuchinho, “se reduzem aos seguintes três pilares: Jesus Cristo é verdadeiro homem, é verdadeiro Deus, é uma só pessoa”.
O pregador da Casa Pontifícia escolhe São Leão Magno para entrar nas profundezas do mistério cristológico. De fato, ele foi o papa reinante no momento em que a teologia latina e aquela grega se encontraram. São Leão Magno não se limitou a transmitir a fórmula de Tertulliano, que tinha escrito: “Vemos duas naturezas, não confusas, mas unidas em uma pessoa, Jesus Cristo, Deus e homem”. Foi mais longe, adaptando a fórmula “aos problemas que surgiram nesse meio tempo, entre o concílio de Éfeso do 431 àquele de Calcedônia do 451”.
Padre Cantalamessa observa que o pensamento cristológico do Papa Leão, exposto no Tomus ad Flavianum, encontra-se no cerne da definição de Calcedônia. Cita, portanto, o ponto em que se declara: "Ensinamos por unanimidade que deve-se reconhecer o único e mesmo Filho Senhor nosso Jesus Cristo, perfeito na divindade e sempre o mesmo perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem [...], gerado antes dos séculos pelo Pai segundo a divindade e nos últimos tempos, por nós homens e para a nossa salvação, gerado por Maria Virgem segundo a humanidade; subsistente nas duas naturezas de modo inconfuso, imutável, indivisível, inseparável, não sendo de forma alguma suprimida a diferença das naturezas por causa da união, pelo contrário, permanecendo preservada a propriedade tanto de uma quanto da outra natureza, elas combinam para formar uma só pessoa e hipóstase”
Na fórmula de Calcedônia, diz o capuchinho, "repousa toda a doutrina cristã da salvação”. De fato, "só se Cristo é homem como nós, o que ele faz, nos representa e nos pertence, e somente se ele mesmo é Deus, aquilo que faz tem um valor infinito e universal”, tanto que, como se canta no Adoro te devote, “somente uma gota do sangue que derramou salva o mundo todo do pecado”. É este um tema sobre o qual o oriente e o ocidente são unânimes.
Santo Anselmo, entre os latinos, e Cabasilas, entre os ortodoxos, apresentam poucas diferenças entre eles quando escrevem que, antes de Cristo, o homem tinha contraído uma dívida infinita com o pecado. Tinha que lutar contra satanás para livrar-se, mas não podia porque era escravo exatamente daquele que deveria vencer. Por outro lado Deus podia expiar o pecado e vencer, mas não tinha que fazê-lo porque não era ele o devedor. Portanto, continua padre Cantalamessa, “era preciso que se encontrassem unidos na mesma pessoa aquele que tinha que lutar e aquele que podia vencer”, e é isso que aconteceu com Jesus, “verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa”.
Estas certezas a respeito de Cristo, no entanto, ao longo dos últimos dois séculos foram colocadas em discussões por estudiosos que, a partir de Strauss, procuraram classifica-las como “puras invenções dos teólogos”, com a finalidade de levar adiante uma tese que separava o Cristo do dogma do Jesus de Nazaré da história. Eles diziam que “para conhecer o verdadeiro Jesus da história” era preciso “prescindir da fé nele posterior à Páscoa”.
O pregador da Casa Pontifícia fala das "reconstruções imaginativas" sobre a figura de Jesus proliferadas em um contexto semelhante e adverte: “Não é possível mais em boa fé escrever “pesquisas sobre Jesus” que pretendem ser ‘históricas’, mas prescindem, ou melhor, excluem do do ponto de partida, a fé nele”. De tal forma, continua o capuchinho, há uma mudança em ato que leva o nome de James D.G. Dunn, um dos maiores estudiosos vivos do Novo Testamento. No livro intitulado “Mudar perspectiva sobre Jesus”, Dunn erradica os pressupostos daquela tese que contrapõe o Cristo da fé e o Jesus histórico, citando, entre as várias argumentações, o fato de que “a fé começou antes da Páscoa”, quando os discípulos começaram a seguir a Jesus porque acreditavam nele. Embora imperfeita, se tratava ainda sempre de fé.
Cristo é a base de tudo no Cristianismo, então Pe. Cantalamessa se pergunta: "Se não se tem ideias claras sobre quem é Jesus, que força terá a nossa evangelização?”. Nem a história nem muito menos o dogma conseguem dar-nos o Cristo da realidade, porque a história, transmitida pelos evangelhos, leva a um Jesus “lembrado”, ou até mesmo mediado pela memória dos discípulos, enquanto que o dogma pode levar a uma Jesus “definido”, “formulado”, que difere da fórmula de Calcedônia como a água que bebemos difere da fórmula química H2O.
Como chegar, então, ao “Jesus real” que está “além da história e por trás da definição”? Por meio do Espírito Santo que, lembra o pregador pontifício, permite um conhecimento “imediato” de Cristo e é “a única mediação não mediata’ entre nós e Jesus, no sentido de que não age como um véu, não constitui um diafragma ou um trâmite, sendo ele o Espírito de Jesus, o seu “alter ego”, da sua mesma natureza”. E, continua, “é a Escritura mesma que nos fala deste papel do Espírito Santo com o propósito de conhecer o verdadeiro Jesus. A vinda do Espírito Santo em Pentecostes resulta em uma iluminação repentina de todo o trabalho e pessoa de Cristo".
Padre Cantalamessa apela, portanto, à ajuda do Espírito Santo para “despertar” o dogma. Do triângulo de São Leão Magno e Calcedônia, pelo qual Jesus Cristo é “uma pessoa em duas naturezas”, o capuchinho toma em consideração o terceiro elemento. O uso moderno do conceito de “pessoa” atribuiu à palavra de origem latina um significado subjetivo e relacional, pelo qual indica “o ser humano em quanto capaz de relação, de estar como um eu diante de um tu”. A fórmula latina “uma pessoa” apareceu portanto, mais fecunda com relação à correspondente grega “uma hipóstase”, porque esta última pode dizer-se de cada objeto existente, enquanto que “pessoa” pode referir-se somente a um ser humano e, por analogia, divino.
Aplicando o discurso para o relacionamento com Cristo, padre Cantalamessa explica que “dizer que Jesus é ‘uma pessoa’ significa também dizer que ressuscitou, que vive, que está diante de mim, que posso tratar-lhe com intimidade como ele a mim. É preciso passar continuamente, no nosso coração e na nossa mente, do Jesus personagem ao Jesus pessoa. A personagem é alguém de quem se pode falar e escrever o que quiser, mas a quem e com quem, no geral, não é possível conversar”. O pregador da Casa Pontifícia introduz portanto um elemento essencial no seu discurso, e afirma que “é possível ter Jesus por amigo, porque, tendo ressuscitado, ele está vivo, está do meu lado, posso relacionar-me com ele como dois seres vivos o fazem, um presente a um presente. Não com o meu corpo e nem mesmo somente com a fantasia, mas ‘no Espírito’ que é também infinitamente mais íntimo e real do que ambos”.
Infelizmente, considera o capuchinho, é raro pensar em Jesus nestes termos, ou seja, como um amigo, um confidente. Esquecemos que, sendo “verdadeiro homem”, Ele “possui em sumo grau o sentimento da amizade que é uma das qualidades mais nobres do ser humano. É Jesus que deseja um tal relacionamento conosco”, não chamando-nos mais servos, mas amigos (cf. Jo 15, 15).
Na sua vida terrena, Cristo estabeleceu relações de verdadeira amizade somente com alguns, embora amasse a todos indistintamente. Agora, como ressuscitado, “não está mais sujeito às limitações da carne” mas, continua padre Cantalamessa, “oferece a cada homem e a cada mulher a possibilidade de tê-lo como amigo, no sentido mais pleno da palavra”. A quarta pregação da Quaresma conclui, portanto, com o desejo de que o Espírito Santo “nos ajude a acolher com maravilha e alegria esta possibilidade que preenche a vida”.
[Trad.TS]
(04 de Abril de 2014) © Innovative Media Inc.

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